Estado Islâmico (Daech): cria do Ocidente 


24/3/2017,
Pepe EscobarSputnikNews, tradução do Coletivo VILA VUDU

James Shea, Vice-secretário Assistente da OTAN para Ameaças Emergentes – mas... que título adorável! – fez recentemente uma palestra num clube privado em Londres sobre o Estado Islâmico (Daech). Shea, como muitos recordarão, fez fama como porta-voz da OTAN durante da guerra da OTAN contra a Iugoslávia em 1999.


Depois da palestra, Shea meteu-se numa discussão com fonte que prezo muitíssimo. E a fonte, adiante, bateu cá para mim a verdade nua e crua.
Segundo a inteligência saudita, o Daech foi inventado pelo governo dos EUA – em Camp Bucca, perto da fronteira com o Kuwait – como muitos recordarão –, essencialmente para pôr fim ao governo de maioria xiita de Nouri al-Maliki em Bagdá.


Claro que não aconteceu desse modo. Então, dez anos depois, no verão de 2014, Daech atacou o Exército Iraquiano, que estava a caminho para conquistar 
Mosul. O Exército Iraquiano fugiu. Agentes do Daech anexaram o armamento ultramoderno que instrutores norte-americanos haviam consumido de seis a 12 meses para ensinar os iraquianos a usar e... surpresa! Em 24 horas oDaech já incorporara aquelas armas ao próprio arsenal.

No final, Shea admitiu com franqueza à minha fonte que o general 
David Petraeus, comandante da sempre louvada 'avançada' (surge) de 2007, deu treinamento a esses sunitas hoje parte do Daech na província Anbar no Iraque.

A inteligência saudita ainda mantém que esses sunitas iraquianos não teriam sido treinados pelos EUA – como Shea confirmou –, porque os xiitas no poder em Bagdá não permitem. Não é verdade. Fato é que o núcleo mais duro do Daech  – a maior parte do qual é constituído de ex-comandantes e soldados do exército de 
Saddam Hussein – é realmente uma milícia treinada pelos EUA.

Claro que, para não fugir ao script, ao final da discussão Shea pôs-se a culpar a Rússia por absolutamente tudo que acontece hoje – incluído do terror do Daech.

Mr. Sykes e Monsieur Picot, os senhores estão mortos 

Voltemos agora à proclamação do Califato do Daech, dia 29/6/2014. Foi coreografada como uma abolição simbólica da fronteira Sykes-Picot que dividiu o Oriente Médio há um século. Ao mesmo tempo, abandonando a opção de um avanço militar para tomar Bagdá, o Daech optou por regionalizar e internacionalizar a luta, criando seu próprio estado transnacional e denunciando como "impostores" os estados regionais. Tudo isso combinado ao 'aprofundamento' de todas e quaisquer estratégias de caos capazes de horrorizar a opinião pública ocidental.

Para largas fatias do público árabe sunita, foi evento poderosíssimo. Daech se autoproclamava, de modo distorcido, o único e real herdeiro das diferentes "Primaveras Árabes"; o único movimento regional totalmente autônomo, dependendo exclusivamente de sua própria base local, formada de numerosas tribos beduínas.

Como chegamos a isso? 

Voltemos mais uma vez – agora ao Iraque nos anos 1990s, durante a era Clinton. A lógica estratégica naquele momento evidenciava uma instrumentalização de resoluções da ONU – com Washington controlando de facto o petróleo iraquiano, manipulando o preço como meio de pressionar concorrentes comerciais muito mais dependentes do petróleo do Iraque, como China, Japão e seletas nações europeias.

9/11 virou esse estado de coisas, de pernas para o ar – levando à estupidez ideológica dos neoconservadores de 2003, e subsequente gestão amadorística de uma ocupação, mergulhados na total ignorância da história e da dinâmica ultracomplexa entre o estado e a sociedade no Iraque. Saddam Hussein foi o último avatar de facto de um arranjo político inventado pela Grã-Bretanha imperial em 1920. Com a invasão e ocupação, o estado do Iraque colapsou. E o regime Cheney não tinha nem ideia de o que fazer com ele.
Não havia alternativa sunita. Assim sendo, o Plano B, sob forte pressão de xiitas e curdos, era dar voz à maioria. Problema aí é que os partidos políticos acabaram por ser partidos religiosos e étnicos. A partição do poder ao estilo libanês – xiitas, sunitas e curdos – revelou-se pesadelo disfuncional, no Iraque. 

Entre 2005 e 2008, essa tentativa dos norte-americanos para reconstruir o estado iraquiano gerou uma terrível guerra civil entre grupos de religiosos sunitas de um lado; xiitas de outro. Os sunitas foram derrotados. O que explica muito do subsequente sucesso do Daech na criação de uma "Sunitlândia" [ing. “Sunniland”].

O caso de amor entre EUA-ocupantes e Primavera Árabe 

Consideremos agora a versão síria de Primavera Árabe em fevereiro-março de 2011. Os protestos iniciais contra o governo de Assad foram pacíficos – sem divisões religiosas ou sectárias. Mas rapidamente o rancor anti-alawitas começou a radicalizar parte significativa da maioria sunita.
Como nos lembra o historiador Pierre-Jean Luizard, especialista em Iraque, Síria e Líbano no CNRS francês, a Síria foi a terra preferida do hanbalismo – ramo muito conservador do Islã Sunita que influenciou muito a emergência do wahhabismo na Península Arábica. Implica antixiismo furioso. Daí o surgimento dentro da oposição síria armada de vários grupos jihadistas salafistas, sobretudo da [Frente] al-Nusra – também chamada al-Qaeda na Síria.
Enquanto isso, Assad afinou uma mensagem para o ocidente e para a própria burguesia sunita local oscilante entre adesão e dissidência; ou eu ou o caos. De um modo ou de outro, sobreveio o caos; violência estrutural horrenda, falência generalizada das instituições, fragmentação territorial.

É justo portanto argumentar que ambas – a ocupação norte-americana e a Primavera Árabe Síria – acabaram por levar ao mesmo resultado. Com algumas diferenças: no Iraque, o Daech tem o apoio (silencioso) da maioria dos árabes sunitas. Na Síria, os sunitas estão divididos: o Daech pode mandar no deserto – cultura beduína; – mas foi a Frente al-Nusra que concentrou para ela significativo apoio sunita em grandes centros urbanos como Aleppo. No Iraque, as fronteiras entre as três grandes comunidades – sunitas, xiitas e curdos – são mais ou menos congeladas. Na Síria é serra de vai e vem, sem fim à vista.

O que acontecerá na sequência é total mistério. A independência de facto do Curdistão Iraquiano pode vir a se firmar. O governo de Bagdá pode cada vez mais passar a representar só os xiitas. Ainda assim é difícil pensar que o Daech venha a consolidar seu controle sobre o Iraque sunita – não com a Batalha de Mosul hoje em andamento.

Na selva de espelhos reinam os tiros de vingança e revide 

É fácil desqualificar completamente o Daech como o ápice insuperável de idiossincrasias culturais bárbaras. Mas apesar de chafurdar na mais lúgubre e sinistra desolação, o Daech conseguiu projetar uma dimensão universalista de si mesmo, que extrapolou sua base árabe sunita no Oriente Médio. É como um choque de civilização, que acontece numa selva de espelhos. 

Daech amplifica o choque, não entre oriente ou ocidente, ou entre mundo árabe e hegemonia atlanticista, mas, principalmente, entre uma determinada concepção distorcida de Islã e infiéis os mais variados. Todos 'cabem' no Daech – até católicos europeus, desde que venham para perseguir infiéis árabes e maus muçulmanos.
Não surpreende que o Califato – utopia que se concretiza em campo – encontre eco entre jovens lobos solitários ocidentais. Porque o Daech faz ecoar a história colonialista franco-britânica, depois norte-americana colonialista, de muçulmanos desgraçados por um ocidente infiel dominador; na sequência, o Daech consegue canalizar a favor dele um sentimento difuso de injustiça que prospera entre os jovens.

Todos – EUA, França, Grã-Bretanha, Rússia, Irã – estão agora em guerra contra o Daech (a Turquia empenhada só pela metade, como a Casa de Saud e a gangue do petrodólar do Conselho de Cooperação do Golfo: para eles, essa guerra não é prioridade).

Mas é guerra sem qualquer perspectiva política séria de longo prazo. Ninguém está discutindo o lugar dos árabes sunitas num Iraque dominado pela maioria xiita. Como recompor a unidade do estado sírio? Ou todos esperam que os doadores-mantenedores privados do Daech, do Kuwait, Qatar, Arábia Saudita e Emirados simplesmente desapareçam no ar?

O cerco de Raqqa e a reconquista de Mosul significarão absolutamente zero, se não se cuidar das causas iniciais do sucesso do Daech.  O processo que levou ao Daech começa com a mission civilisatrice ["missão de civilizar"; fr. no orig.; é expressão de François Georges-Picot, a metade francesa do Acordo Sykes-Picot de 16/5/1916 (NTs)] que caberia ao Ocidente, e serviu como cobertura para a mais ilimitada dominação; e prossegue como a destruição do Iraque, metódica, inexorável, em câmera lenta, que os norte-americanos continuam a promover. A vingança e o revide continuarão a reinar naquela selva de espelhos: um ataque próximo do Parlamento Britânico, por um lobo solitário armado de faca, lobo solitário e "soldado que respondeu" ao "chamamento" para matar quatro pessoas, repetido infindavelmente de espelho em espelho, também nos jatos bombardeiros dos EUA que atacam uma escola perto de Raqqa e matam 33 civis.

Petraeus pode até os ter treinado nos desertos de al-Anbar. Mas, sobretudo, essas bestas brutais arrastadas para Camp Bucca[1]para engordar e reproduzir-se, carregam nelas mesmas a marca mortífera do pensamento ocidental.


[1] Camp Bucca foi campo de detenção de prisioneiros mantido por militares dos EUA perto de Umm Qasr, Iraque. Em abril de 2003, o local, usado pelas forças britânicas como prisão de iraquianos, foi tomado pela 800ª Brigada da Polícia Militar dos EUA e recebeu o nome Ronald Bucca, bombeiro de NY, que morreu nos ataques de 9/11 [NTs, com informações (a parte que se aproveita, daquela propaganda toda) de Wikipedia ].


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