Os Estados Unidos Marcham para a Morte

 

Os Estados Unidos Marcham para a Morte

 

 Arte de Mr. Fish para Scheerpost

Segundo Chris Hedges, não importa o resultado das eleições nos EUA. Não terão o condão de impedir o aumento de nacionalismo exacerbado, o culto à crise e outros sinais de um Império em declínio terminal.

Texto de Chris Hedges, tradução de btpsilveira

Publicado originalmente em https://consortiumnews.com/2020/08/10/chris-hedges-americas-death-march/ , via  Scheerpost

As eleições não solucionarão o declínio terminal dos Estados Unidos. A depravação e podridão continuarão a carcomer a alma da nação, gerando o que os antropologistas chamam de culto à crise – movimentos liderados por demagogos que se aproveitam do sofrimento financeiro e psicológico insuportável.

Esses cultos à crise, já bem firmados entre seguidores de Christian Right e Donald Trump, traficam pensamentos mágicos e um infantilismo que promete – em troca de toda a sua autonomia – prosperidade e retorno a um passado místico de ordem e segurança.

Os anseios sombrios entre a classe trabalhadora branca por vingança e renovação moral através da violência, a ganância desenfreada e a corrupção dos oligarcas empresariais e bilionários que dirigem nossa democracia falida, que já instituiu a vigilância governamental total e revogou a maioria de nossas liberdades civis, são partes das patologias distorcidas que infectam todas as civilizações que se desmancham no caminho do esquecimento.  Testemunhei a morte de outras nações durante o colapso do regime comunista na Europa Oriental e mais tarde na antiga Iugoslávia. Já senti esse cheiro pútrido antes.

Eventual remoção de Trump do gabinete só vai exacerbar a sofreguidão pela violência racista que incita e o elixir tóxico do nacionalismo branco. As elites que nos governam, construtores primeiros da máfia econômica e depois da máfia estatal, continuará sob Biden, como continuou sob Barack Obama, George W. Bush, Bill Clinton e Ronald Reagan, para continuar o saque e a pilhagem deliberada.

A polícia militarizada continuará sua devastação letal nos bairros pobres. As guerras infinitas continuarão. O orçamento militar inchado não será reduzido. A população do maior sistema prisional do mundo continuará manchando o país. Os empregos do setor manufatureiro mandados para fora não retornarão e a desigualdade social aumentará.

O sistema de saúde voltado ao lucro continuará a sangrar o público e arrecadará mais milhões de dólares do sistema de saúde. A linguagem do ódio e da intolerância será normalizada como forma primária de comunicação. Inimigos internos, entre eles os muçulmanos, imigrantes e dissidentes serão difamados e atacados. A super masculinidade que compensa o sentimento de impotência tornar-se-á mais intensa. Dirigirá sua peçonha contra mulheres e aqueles que não querem se adaptar aos padrões masculinos rígidos, especialmente artistas, o povo LGBTQ e intelectuais.

Mentiras, teorias da conspiração, curiosidades fúteis e fake News – o que Hannah Arendt chamou de “nihilismo relativista” – dominará as transmissões e a mídia social, zombando do fato verificável e da verdade. O ecocídio que pressagia a extinção tanto do ser humano quanto da maioria das formas de vida continuará trilhando inabalável o caminho em direção ao seu final apocalíptico.

Pascal escreveu: “Insensatos, continuamos a rumar para o abismo, depois de colocar uma barreira que nos impede a visão”.

Quanto mais difícil a situação – e ficará ainda pior na medida em que onda após onda mortal da pandemia matará cerca de 300.000 (norte)americanos até dezembro e possivelmente 400.000 por volta de janeiro – mais desesperada a nação se tornará. Dezenas de milhões de pessoas perderão tudo, despejadas de suas casas e abandonadas à própria sorte.

Ao colapso social, como observado por Peter Drucker na Alemanha de Weimar nos anos 1930, junta-se a falta de fé nas instituições e ideologias vigentes. Sem respostas à vista para o caos e catástrofe crescentes – e Biden e o Partido Democrata já impediram antes o tipo de programas New Deal e combate ao poder das oligarquias que nos salvou durante a Grande Depressão – demagogos e charlatões só precisam denunciar todas as instituições, políticos e convenções sociais e políticas, enquanto continuam a conjurar falanges de inimigos fantasmas.

Drucker afirma que o nazismo teve sucesso não porque o povo acreditou em suas promessas fantásticas, mas apesar delas. Ele destaca que os absurdos nazistas foram testemunhados “por uma imprensa hostil, rádio hostil, cinema hostil, Igreja hostil e um governo hostil, os quais apontaram incansavelmente as mentiras, inconsistência e inatingibilidade de promessas, perigos e loucura das pretensões nazistas.”

“Se a crença racional nas promessas nazistas fosse um pré-requisito, ninguém seria nazista” asseverou ele. O poeta, dramaturgo e revolucionário socialista Ernst Toller, que foi forçado ao exílio e destituído de sua cidadania quando os nazistas assumiram o poder em 1933 escreveu quase a mesma coisa em sua autobiografia: “As pessoas estão cansadas da razão, cansadas do pensamento e reflexão. Eles perguntam o que a razão fez nos últimos anos, o que de bom o discernimento e o conhecimento nos deram”.

Depois que Tollen cometeu suicídio em 1939, W. H. Auden escreveu em seu poema “Em Memória de Ernst Tollen”:

Das forças que nos dão a vida fingimos compreensão

Elas nos fornecem os amores; e no final dirigem

A bala inimiga, a doença e até nossa própria mão

 

Culto à Crise Cumula Conflitos

Os pobres, os vulneráveis, aqueles que não são cristãos, os não documentados ou quem não repete estupidamente o hino de um nacionalismo cristão pervertido, na crise serão oferecidos ao deus da morte, uma forma familiar de sacrifício humano que pragueja as sociedades doentes.  Nos prometem que uma vez que esses inimigos sejam eliminados da nação, os Estados Unidos recuperarão sua glória. Nunca se explica que, uma vez obliterado determinado inimigo, outro lhe toma imediatamente o lugar.

Os cultos à crise precisam de uma escalada nos conflitos. Foi o que fez a guerra na antiga Iugoslávia inevitável. Uma vez que determinado conflito alcança um clímax, perde a eficácia. Precisa então ser substituído por confrontação ainda mais violenta e mortal. O vício e intoxicação em conflitos com níveis de violência sempre mais altos para purgar determinada sociedade foi o mal que levou ao genocídio na Alemanha e na antiga Iugoslávia. Não estamos imunes. É o que Ernst Jünger chama de “o banquete da morte”.

Drucker compreendeu que os cultos à crise são irracionais e esquizofrênicos. Não possuem ideologia coerente e viram a moralidade de cabeça para baixo. Apelam exclusivamente para as emoções. Os palhaços e as celebridades se tornam políticos. A depravação se torna a moral. Atrocidades são vistas como heroísmo. O crime e a fraude transformam-se em justiça. A ganância e o nepotismo espelham virtudes cívicas.

O que esses cultos aceitam hoje, condenam amanhã. No clímax do reino do terror, em 06 de maio de 1794, em plena revolução francesa, Maximilien Robespierre anunciou que o Comitê para a Segurança Pública agora reconhecia a existência de Deus. Os revolucionários franceses, ateus fanáticos que tinham profanado igrejas e confiscado suas propriedades, assassinado centenas de padres e forçado outros 30.000 ao exílio, voltaram atrás instantaneamente e mandaram para a guilhotina os que tinham menosprezado a religião. No final, exauridos pela confusão moral e contradições internas, esses cultores da crise desejavam pela auto aniquilação.

No seu livro clássico Sobre o Suicídio o sociólogo francês Emile Durkheim esclarece que quando os laços sociais são desfeitos, quando a população sente que não tem mais lugar significativo em dada sociedade, os atos de auto destruição individuais e coletivos proliferam.

As sociedades permanecem unidas por uma rede de laços sociais que dá aos indivíduos um senso de fazer parte de uma entidade coletiva e engajamento em projetos maiores que sua individualidade. Essa entidade coletiva se expressa através de rituais, como eleições e participação democrática, ou apelos ao patriotismo, e ainda o compartilhamento de crenças nacionais. Os laços dão sentido, um senso de finalidade, status e dignidade. Oferecem proteção psicológica para a mortalidade iminente e a insignificância que aparece quando se vive só e isolado. A quebra desses laços lança os indivíduos em sofrimento psicológico profundo. Durkheim chamou esse estado de desalento e desespero de anomia que ele definiu como “ruleless-ness” (des-regramento, no sentido de não mais fazer parte de regramento ou normatização [societária]. Assim, a pessoa nessa situação seria ‘menos’ humana – NT)

Ruleless-ness significa que as normas que governam uma sociedade e criam um senso de solidariedade não funcionam mais. A crença, por exemplo, de que se eu trabalhar duro, obedecer a lei e ter uma boa educação me farão alcançar um emprego estável, status social e mobilidade junto com segurança financeira torna-se uma mentira.

As antigas regras, imperfeitas e mentirosas para pessoas pobres de cor, não eram, entretanto, uma ficção total nos Estados Unidos. Ofereciam a alguns (norte)americanos – especialmente aqueles das classes média e trabalhadora – um avanço social e econômico modesto. Durkheim teria reconhecido o sofrimento generalizado desencadeado pela desintegração desses laços.

As patologias auto destrutivas que praguejam os Estados Unidos – vício em opioides, jogo, suicídio, sadismo sexual, grupos de ódio e assassinatos em massa – são produtos dessa anomia. Bem como nossa disfunção política. Meu livro Estados Unidos: Viagem de Despedida, é um exame dessas patologias e da anomia generalizada que define a sociedade (norte)americana.

Desprezo ao Mérito

Mesmo antes da pandemia as estruturas econômicas foram reconfiguradas para desprezar a fé na meritocracia e a crença de que o trabalho duro leva a um papel produtivo e valorizado na sociedade. A produtividade do país, como mostra o jornal The New York Times, cresceu 77 % desde 1973, mas o pagamento por hora cresceu apenas 12%. Se o salário mínimo federal fosse ligado à produtividade, escreve o jornal, seria de mais de $20 dólares a hora hoje em dia, não apenas $7,25 dólares.

Um terço da força de trabalho, cerca de 41.7 milhões de trabalhadores, ganha menos que $12 dólares por hora, e a maioria deles não tem acesso ao seguro saúde pago pelos empregadores. Uma década depois da crise financeira de 2008, continua o jornal, o patrimônio de uma típica família de classe média está $40.000 dólares abaixo do que era em 2007. O patrimônio das famílias negras decresceu 40% e das famílias latinas 46%.

Cerca de quatro milhões de despejos são cumpridos por ano. Um em cada quatro inquilinos de imóveis gastam mais ou menos a metade de sua renda bruta em aluguéis. Toda noite, 200.000 pessoas dormem em seus carros, nas ruas ou embaixo de pontes. E esses números representam os bons tempos que Biden e os Democratas prometem restaurar.

Agora, com o desemprego provavelmente perto de 20% - o número oficial de 10% exclui aqueles que estão em licença ou que pararam de procurar emprego – mais ou menos 40 milhões de pessoas correm o risco de serem despejadas até o final do ano. Estima-se que 27 milhões de pessoas ficarão sem seu seguro de saúde. Os bancos estão estocando dinheiro para lidar com a esperada onda de falências e falta de pagamento de hipotecas, empréstimos estudantis, empréstimos veiculares, empréstimos pessoais e débitos de cartão de crédito.

A anomia que define as vidas de dezenas de milhões de (norte)americanos foi orquestrada pelos dois partidos no governo, a serviço das corporações oligárquicas. Se não atacarmos essa anomia, se não restaurarmos os laços sociais destruídos pelo capitalismo corporativista predatório, a decadência acelerará.

 

Essa patologia humana sombria é tão velha quanto a própria civilização, repetindo-se em várias formas no crepúsculo da Roma e da Grécia antigas, no final dos Impérios Otomano e Austro/Húngaro, na França revolucionária, na República de Weimar e na antiga Iugoslávia.

A desigualdade social que caracteriza todos os estados e civilizações dominados por uma cabala pequena e corrupta – no nosso caso, corporativa – leva grandes segmentos da população a uma enorme vontade de destruir tudo.

Os nacionalistas étnicos Slobodan Milosevic, Franjo Tudjman, Radovan Karadzic e Alija Izetbegovic, na antiga Iugoslávia, assumiram o poder em um desses períodos de caos econômico e estagnação política. Por volta de 1991, os iugoslavos estavam sofrendo um desemprego generalizado e viram seus rendimentos reais reduzidos pela metade do que ganhavam há apenas uma geração.

Estes demagogos nacionalistas santificaram seus seguidores como vítimas inocentes perseguidas por uma gama de inimigos elusivos. Falavam numa linguagem de vingança e violência, levando, como sempre acontece, à violência real. Viajaram por mitos históricos, deificando o passado através da exploração da raça ou etnicidade, em um perverso tipo de culto aos ancestrais, um mecanismo para fornecer àqueles que sofriam de anomia, aos que haviam perdido a dignidade e autoestima uma identidade nova e gloriosa como parte de uma raça superior.

Quando andei há alguns anos por Montgomery, Alabama, cidade onde metade da população é afro/americana, junto com o procurador de direitos civis Bryan Stevenson, ele apontou para vários memorais dos Confederados, observando que a maioria deles fora erguida na última década. “Isso” eu lhe disse, “é exatamente o que aconteceu na Iugoslávia”.

O super nacionalismo sempre infecta uma civilização em agonia. Isso alimenta a autoestima coletiva. Celebra as virtudes supostamente únicas de uma raça ou grupo nacional. Elimina todos os que estão fora do círculo fechado de valor e humanidade. O mundo se torna instantaneamente compreensível, um quadro em preto e branco – nós e eles.

A máscara caiu

Nestes momentos trágicos da história, as pessoas sofrem de insanidade coletiva. Não querem pensar, especialmente quando se trata de autocrítica. Nada se resolverá em novembro. Na realidade, ficará pior.

Joe Biden, um político superficial e desprovido de crenças firmes ou profundidade intelectual, é o espelhamento da nostalgia de uma classe governante que quer retornar à pantomina da democracia. Querem restaurar o decoro e a seita civil que faz da presidência uma forma de monarquia, sacralizando os órgãos do poder estatal.

A vulgaridade e incompetência de Donald Trump é um embaraço para os arquitetos do Império. Ele descerrou o véu que cobria nossa democracia falida. Ocorre que não importa quão duramente as elites tentem, o véu não pode ser restaurado. A máscara caiu. A fachada desabou. Biden não pode trazê-la de volta.

A disfunção política, econômica e social define hoje o Império (norte)Americano. Nossa incrível incapacidade de conter a pandemia que já afeta mais de 5 milhões de pessoas e o fracasso de lidar com a queda da economia que a pandemia causou, expôs o modelo falido do capitalismo (norte)americano.

De repente, o mundo, dominado há sete décadas pelos EUA, ficou livre para pensar em outros sistemas políticos e sociais que servem ao bem comum em vez de alimentar a ganância corporativa. A estatura dos Estados Unidos diminuiu até entre seus aliados europeus, trazendo a esperança de novas formas de governo e poder.

Cabe a nós mesmos a destruição da cleptocracia nos EUA. Também é tarefa nossa a montagem de atos de desobediência civil em massa para colocar abaixo o Império. Ele envenena o mundo e a nós mesmos. Se nos mobilizarmos para construir uma sociedade aberta, teremos a possibilidade de rechaçar o culto à crise, bem como diminuir e impedir a marcha para o ecocídio.

Para isso, precisamos reconhecer, como o povo que protesta nas ruas de Beirute, que nossa cleptocracia, como a do Líbano, não tem possibilidade de salvação. O sistema (norte)americano de capitalismo invertido, nas palavras do filósofo político Sheldon Wolin, deve ser erradicada se quisermos nos salvar da destruição em massa e ter nossa democracia de volta.

Precisamos ecoar os cantos da multidão no Líbano, exigindo a remoção total de sua classe governante – kulyan-yani-kulyan – todo mundo é todo mundo.

 

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