O ataque dos turcos contra os curdos na
Síria: ganhadores e perdedores
Parte I - artigo de
Elijah J. Magnier – tradução: btpsilveira
.
O presidente
Donald Trump ordenou o início de uma “retirada deliberada”
de suas tropas e o fim da ocupação do nordeste da Síria (NES). Isso veio
acelerar uma corrida entre as forças turcas e sírias para controlar o NES.
A Turquia se apressa para estabelecer cerca de
30/35 km de uma zona de segurança na fronteira com a Síria no território
ocupado pelos Estados Unidos, atualmente sob controle dos curdos sírios
separatistas. O presidente turco Recep
Tayyip Erdogan está consciente da pressão que sofre seu aliado, o
presidente Donald Trump, por causa da aprovação dessa operação, a qual fez
Trump ainda mais impopular entre as elites dos Estados Unidos e do ocidente em
geral.
Trump decidiu sozinho tomar controle de uma área
síria maior que a Suíça. Sem ser convidado pelo governo central do país, ele
estabeleceu mais de uma dezena de bases militares e aéreas no país e as manteve
ali mesmo após a derrota do Estado Islâmico. Agora, ele concordou com a
retirada de algumas tropas (norte)americanas, permitindo que a Turquia e seus
apaniguados se movessem para esta parte do território sírio. Trump e Vladimir
Putin bloquearam uma resolução
proposta pela União Europeia condenando a ofensiva de Ancara. Agora, os
vencedores dessa operação são muito mais numerosos que os perdedores e seria um
erro supor que apenas a Turquia está levando vantagem com essa operação. Todos
os vencedores tiveram seus próprios objetivos e metas para se assegurar como
poderiam lucrar com a invasão dos turcos.
Ao
decidir retirar 1000 tropas do NES, Trump está redistribuindo as cartas,
tirando o problema das mãos de sua administração e deixando-o com a Rússia,
Turquia e Síria (e seus aliados). A Rússia agora tem que se mover rápido e
reunir os principais atores na mesa de negociações para organizar a situação,
que pode evoluir para um cenário bem mais caótico e de confrontação ainda
maior.
De qualquer forma, os maiores perdedores são os
curdos: o YPG (Unidades de Proteção Popular), braço armado do (PYD), Partido de
União Democrática dos curdos sírios, e a facção síria do (PKK) Partido dos
Trabalhadores do Curdistão, o qual é classificado como organização terrorista
pelos Estados Unidos (desde 1997), pela União Europeia (desde 2002) e pela OTAN,
Turquia e alguns outros países.
Os curdos no Levante
Atualmente,
os curdos se localizam no Sudeste da Turquia, no Nordeste da Síria, no Norte do
Iraque, no Noroeste do Irã e no Sudoeste da Armênia. Com população estimada em
30 milhões, são a maior minoria apátrida no mundo. Mais de metade dos curdos
vivem na Turquia; assim não é totalmente correto chamar o ataque turco contra
os curdos sírios de “limpeza étnica”.
No tratado de paz de Lausanne em
1923, a República da Turquia negou aos curdos a realização de seu sonho de um “Curdistão”
independente que pudessem chamar de seu. A partir daí, os curdos lançaram
várias rebeliões, todas fracassadas, nas tentativas de conseguir seu intento.
Essas tentativas incluíram a rebelião de Sheikh Said (1925),
a revolução de Ararat (1930),
liderada pelo armênio Ziylan Bey, um dos mais famosos rebeldes das montanhas (o
iraquiano Mustafa Barzani cruzou a fronteira para se juntar a rebelião), e o
genocídio que ocorreu em 1937/38 em Dersim. Esta
última rebelião ocorreu sob as ordens do presidente turco Mustafa Kemal
Atatürk, e é reconhecida pelo presidente Erdogan como um “massacre”.
Em 1974, Abdullah Ocalan formou um movimento
proletário Maoista, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) e focou em
ações com alvos dentro da Turquia. Desde então ao menos 40.000 pessoas foram
mortas neste conflito sem que os curdos conseguissem seu objetivo de ter um
Estado. Ocalan e mais cerca de 3000 militantes do PKK estão apodrecendo na
prisão. Os Estados Unidos, a União Europeia e outros Estados categorizam o PKK
como organização terrorista. “O PKK está na lista de organizações ligadas ao
terror e a União Europeia não tem perspectiva de tirar o partido da lista”.
Palavras da chefe da política externa da União Europeia, Federica Mogherini em
março deste ano.
Quando
começou a guerra da Síria em 2011, os curdos sírios eram neutros porém
forneceram suprimentos para cidades sírias sob cerco que os necessitavam. Tudo
mudou em setembro de 2014 quando o Estado Islâmico (IS, ISIS, ISIL ou Daesh)
atacou a cidade curda de Ayn al-Arab, conhecida pelos curdos como Kobani.
Embora
a Turquia tenha recusado (até para evitar distúrbios domésticos) permitir que
curdos turcos atravessassem a fronteira para ajudar seus irmãos sírios, abriu
as fronteiras para que a milícia curda Peshmerga, do Iraque, entrasse na luta
justamente quando a cidade parecia prestes a cair. A milícia tinha como tarefa principal instalar
direcionadores a laser para guiar os jatos dos EUA contra alvos do Estado
Islâmico. A cidade foi destruída, mas o Estado Islâmico não conseguiu conquistá-la,
retirando-se em janeiro de 2015.
Em
outubro de 2015 a coligação liderada pelos Estados Unidos formou, treinou e
armou a então chamada Força Democrática Síria (SDF) sob comando curdo e lado a
lado com milícias árabes locais. Os curdos reacenderam a esperança de que seu
sonho finalmente se materializasse, dado que a perspectiva de divisão no Iraque
e na Síria naquele momento parecia realista. Um estado curdo parecia afinal
possível, e o nome foi até escolhido, “Rojava” (Rojavayê Kurdistanê), uma das
partes do Grande Curdistão foi escolhido. Esse território se estendia desde a
cidade de Afrin, no noroeste do país, até al-Hasaka, no nordeste.
Em
agosto de 2016, a Turquia inseriu suas próprias tropas na Síria com a ajuda de
cúmplices sírios e capturou a cidade fronteiriça de Jarablus. Isso atrapalhou
os planos curdos. Quase dois anos depois, a Turquia conquistou a cidade curda
de Afrin, cortando o mapa de Rojava e dispersando dezenas de milhares de
curdos.
Os
curdos preferiram entregar a cidade aos turcos que permitir que o exército
sírio a defendesse. Negociações intensivas tiveram lugar na base militar russa
de Hmeimin, entre líderes curdos e o governo sírio de Damasco. Os curdos
recusaram abrir mão de bilhões de dólares que acumularam a partir da
agricultura síria e não quiseram se juntar ao exército nacional da Síria. Eles
queriam ao mesmo tempo autonomia total e que o exército sírio servisse como
seus guardas de fronteira. Preferiram lutar e perder a batalha a retornar o
território para o controle do governo do país. Os curdos optaram pela ocupação
turca. Isso se provou ser sei primeiro grande erro de julgamento.
Em
setembro de 2015, quando a Rússia se convenceu que deveria mover sua força
aérea para a Síria, foi necessária alguma coordenação com os EUA, para evitar
embates. Qualquer área a leste do Rio Eufrates foi considerada sujeito de
controle e área de operação dos Estados Unidos. A oeste do rio, o controle
pertencia à Rússia. Depois de derrotar o Estado Islâmico, o exército sírio e
seus aliados tentaram cruzar o Eufrates para eliminar o IS que naquele momento
ocupava os ricos campos de petróleo e gás ao norte de Deir Azzur, antes que as
forças apoiadas pelos Estados Unidos os alcançassem. Foram dizimados pelas
forças (norte)americanas. Mais de 200 tropas foram mortas, mostrando que os Estados
Unidos não estavam prontos para ceder o que consideravam sua “zona de
influência”, a qual era acompanhada, claro, por consideráveis vantagens
materiais.
Ficou
claro que os EUA tinham a intenção de ocupar e manter uma área que representava
quase um terço da Síria, particularmente rica em agricultura e recursos
energéticos.
Foi
então que o líder iraquiano Masoud Barzani se atropelou e falhou ao declarar um
Estado Curdo independente no Iraque colocando um final no sonho curdo de unir
Rojava com o curdistão iraquiano.
Com a chegada do novo presidente (norte)americano,
Trump, chegou também a promessa de campanha de trazer para casa as tropas dos
Estados Unidos do Oriente Médio. Trump descreveu o nordeste da Síria como uma
terra de “areia e morte”.
Sua pretensão era a retirada, a menos que a área desse lucro. Os Estados árabes
que até ali tinham gastado fortunas financiando rebeldes e jihadistas, perderam
a vontade de continuar fornecendo dinheiro e armas. Não queriam continuar
pagando as tropas dentro da Síria. De repente, Trump descobriu que as tropas
curdas “não eram grandes lutadores” e que precisavam da força aérea dos EUA
para limpar o terreno antes de atacar o Estado Islâmico. Minimizou dessa forma
o papel exercido pelos curdos, bem como suas perdas ao derrotar o Estado
Islâmico na capital do “Califado”, em Racca.
Apesar das amargas experiências de 1975, os
curdos jamais imaginaram que pudessem ser traídos pelos Estados Unidos. Foi seu
segundo grande erro. Os líderes militares curdos tentaram, em vão, convencer
seus líderes políticos a abrir conversações sérias com Damasco. Na realidade,
os curdos suspenderam as negociações e mais uma vez pareceram preferir um
ataque turco que trabalham em conjunto com o governo sírio. Colocaram toda a
sua esperança no apoio da comunidade internacional e na mídia corporativa. Em
verdade, a mídia e personalidades públicas realmente ofereceram aos curdos
abundante apoio verbal. Mas com certeza isso não foi o suficiente para parar o
ataque turco, que agora está avançando rapidamente na área que pretendem ocupar.
Para Trump, os curdos não passam de mercenários que foram usados e pagos. Desde
que seus serviços não são mais necessários, ele está pronto para retirar as forças
(norte)americanas para obter as boas graças da Turquia. Agora que seu poder de
fogo não é mais necessário, os curdos, segundo Trump, são dispensáveis. Enquanto
isso, os curdos insistiram em agir como escudo humano para os soldados de Trump
em al-Hasaka e Qamishli. Acreditaram que as redes sociais, junto com campanhas mídia
poderiam reverter a decisão de Trump. Mas nesse momento eles não tem aliados no
terreno e nem as montanhas os protegerão. Suas escolhas erradas – ceder território
que não lhes pertencia – os tornaram os maiores perdedores neste momento. O
anúncio em cima da hora pelos Estados Unidos e uma retirada súbita foi um balde
de água fria no ânimo dos curdos, que sequer tinham consultado Damasco para que os protegesse dos ataques turcos. Com certeza passou da hora de acordar para
o que é, neste momento, a única opção viável.
Elijah J. Magnier é analista de riscos, correspondente
e escritor com mais de 35 anos experiência em assuntos do Oriente Médio e
Europa.
nota do tradutor: Assim, que a segunda parte do artigo for publicada, será traduzida.
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