Vencedores e perdedores no ataque turco contra os
curdos na síria – Parte III
Por Elijah J. Magnier: – tradução: btpsilveira
Na Segunda Guerra Mundial,
os Estados Unidos emergiram como os vencedores e se tornaram mais fortes que
qualquer outro país do mundo. Os aliados – principalmente a União Soviética –
venceram a guerra mas saíram dela muito fracos. Precisavam reconstruir seus
países e suas economias, com os EUA exigindo enorme pagamento retrospectivo pelo seu apoio. Os Estados Unidos se tornaram uma
superpotência com capacidade de guerra nuclear e poder de impor seu domínio.
Países industriais foram reconstruídos no que a Alemanha chamou de Wirtschaftswunder e a França de les Trentes Glorieuses, os trinta anos de prosperidade posteriores ao final da guerra. Enquanto
isso, os Estados Unidos impulsionaram sua prosperidade para espalhar sua
hegemonia mundo afora. O poder dos EUA foi reforçado com o início da Perestroika e depois da queda da União Soviética. No novo milênio, o establishment
dos Estados Unidos declarou a “Guerra ao Terrorismo” como justificativa para ocupar o Afeganistão e o Iraque,
enquanto ao mesmo tempo tentava subjugar o Hezbollah no Líbano, mudar o regime
na Líbia e tentar a destruição da Síria, tudo com o objetivo de reestruturar e
formar um “Novo Oriente Médio”.
No Levante, a falha dos
Estados Unidos na tentativa de alcançar seus objetivos foi dramática, mas teve
sucesso em acordar a Rússia de sua longa hibernação, para desafiar a hegemonia
unilateral dos EUA no mundo e desenvolver novas formas de alianças. O Irã
também desafiou gradativamente a hegemonia dos Estados Unidos desde a “Revolução
Islâmica” de 1979. O país planejou paciente e meticulosamente a construção de
uma cadeia de aliados, conectando várias partes do Oriente Médio. Agora 37 anos
depois, o Irã pode se gabar de um cordão de aliados fortes na Palestina, no
Líbano, na Síria, no Iraque, no Iêmen e Afeganistão – que estão prontos, se
necessário, para pegar em armas e defender o Irã. Na realidade, o país se beneficiou
muito dos erros dos Estados Unidos. Pela sua falta de compreensão de líderes e
populações pelo mundo, Os EUA falharam universalmente em ganhar “coração e
mentes” em cada um e todos os países do Oriente Médio onde tentaram se impor
como aliado potencial.
A entronização de Trump nos
Estados Unidos ajudou os aliados e também os inimigos dos EUA a descobrir,
juntos, os limites e o alcance das sanções que os Estados Unidos gostam de
impor. A liderança foi de pronto assumida por Rússia e China, ao oferecer um
modelo novo e mais suave de aliança, a qual aparentemente não tem o objetivo de
impor outro tipo de hegemonia. A oferta de aliança econômica e parceria é
especialmente atrativa para aqueles que já tiveram a infelicidade de testar o
modelo hegemônico (norte)americano e querem se libertar através de uma
alternativa mais equilibrada.
No governo Trump, o Oriente
Médio tornou-se um enorme armazém cheio de armas de várias fontes. Cada país em
particular (e alguns atores não estatais) está armado com drones – e alguns têm
até mísseis de cruzeiros e de precisão. Ocorre que superioridade de armamentos
não conta muito, e o equilíbrio de armamento não é suficiente para medir o peso
militar de um lado ou de outro. Até o país mais pobre do Oriente Médio, o
Iêmen, pode causar dano significativo ao mais rico, a Arábia Saudita, um país
pesadamente armado com o mais moderno equipamento militar dos Estados Unidos no
Oriente Médio.
Com certeza o presidente
dos EUA foi informado do fracasso evidente da tentativa de derrubar o regime na
Síria e também da impossibilidade de desalojar o Irã do Levante. Provavelmente,
ele quer evitar perda desnecessária de vidas, daí sua decisão de abandonar o
país que suas forças ocuparam nos últimos anos. Mesmo assim, sua súbita
retirada, mesmo que parcial (porque ele afirma que uma pequena unidade
permanecerá nas imediações de Al-Tanf, mesmo que sem benefício estratégico, dado
que o posto de fronteira em al-Qaem está novamente operacional) – veio como um
choque para seus aliados israelenses e curdos. Trump mostrou sua capacidade de
abandonar mesmo amigos/inimigos mais próximos do dia para a noite.
Damasco usufruiu de uma
vitória inesperada com o movimento de Trump. Agora, o governo sírio está recuperando
aos poucos sua fonte mais importante de comida, agricultura e energia. O
nordeste da Síria representa um quarto da geografia do país. As províncias
nortistas são excepcionalmente ricas em água, represas hidroelétricas,
petróleo, gás e alimentos. Tudo isso foi devolvido pelo presidente Trump a
Assad. Aliás, isso também beneficia Trump em sua campanha para a reeleição.
Assad tem confiança na
capacidade da Rússia de parar o avanço turco e reduzir suas consequências,
talvez colocando os curdos a uma distância de 30 km das fronteiras turcas para
aplacar a ansiedade do presidente Erdogan. Isso pode também ser encaixado no
acordo de Adana, de 1998, entre Turquia e Síria (5 km em vez de 30 km para a
fixação de uma zona de segurança), o que providenciaria tranquilidade a todas
as partes envolvidas. A Turquia quer estar segura de que o YPG curdo, sucursal
do PKK turco, será desarmado e contido. Nada tão difícil para a Rússia fazer,
particularmente tendo em mente que o objetivo mais difícil, a retirada das
tropas dos Estados Unidos, foi oferecido graciosamente.
O presidente Assad terá prazer em cortar a cauda
dos curdos. Os turcos ofereceram Afrin para os turcos a fim de impedir que as
forças governamentais sírias a controlassem. Os curdos, em troca do Estado de
seus sonhos (Rojava), apoiou a ocupação dos Estados Unidos e apoiou também o
principal inimigo sírio, Israel. O primeiro ministro Benyamin Netanyahu
bombardeou centenas de alvos na Síria, preferindo que o país fosse dominado
pelo Estado Islâmico (ISIS) e pressionando Trump a oferecer de bandeja para
Israel as Colinas do Golã como presente – mesmo que os Estados Unidos não tenham
autoridade sobre o território sírio.
Morreram centenas de
milhares de sírios, milhões de refugiados foram expulsos de suas casas e
centenas de bilhões de dólares foram gastos para destruir a Síria. Mesmo assim,
o presidente Assad e a Síria prevaleceram. Sejam quais forem os resultados da
guerra, países árabes e do Golfo Pérsico querem retornar ao país e participar
de sua reconstrução. Seja quem for que governar a Síria, a tentativa de
destruir o Estado e mudar o atual regime, falhou completamente.
Entre os atores no palco,
em seus múltiplos fronts, a Rússia é o mais bem sucedido. Hoje está em uma
posição que o presidente Putin sequer sonharia antes de 2015. Numerosos
analistas e Think Tanks previram que Moscou afundaria no pântano sírio, e
zombaram de seu arsenal. Todos estavam errados. A Rússia aprendeu bem a lição
recebida na invasão do Afeganistão em 1979. Ofereceu cobertura aérea e de
mísseis e cooperou brilhantemente com o Irã e seus aliados como forças que atuariam no terreno.
O presidente russo trabalhou com brilhantismo na
guerra da Síria, encontrando uma posição de equilíbrio e forjando bons laços
com a Turquia, um aliado da OTAN – mesmo depois da derrubada pelos turcos de um
avião russo em 2015. A Rússia tentou colaborar com os Estados Unidos, mas teve
pela frente a oposição de uma fobia “soviética/vermelha” da administração
(norte)americana. Moscou teve que trabalhar sem Washington para resolver a
guerra na Síria e derrotar os jihadistas que afluíram do mundo inteiro para o
interior do país com o apoio do ocidente (via Turquia e Jordânia). A Rússia
exibiu seu novo arsenal e conseguiu vender grandes lotes de armas. Treinou sua
força aérea em combate real, lutou lado a lado com os exércitos da Síria, do
Irã e de um agente não estatal (Hezbollah). Bateu o ISIS e a al-Qaeda 40 anos
depois de sua derrota no Afeganistão. Putin colocou-se como um parceiro e
aliado confiável, ao contrário de Trump – que abandonou os curdos e chantageia
até seu aliado mais próximo (Arábia Saudita).
A Rússia conseguiu impor o
processo de paz de Astana em substituição ao de Genebra, ofereceu comércio em
moedas locais em vez do dólar aos países e está abordando com pragmatismo as
relações entre Irã e Arábia Saudita e entre Assad e Erdogan. Os
(norte)americanos, por sua temeridade negligente, se mostraram incapazes de diplomacia.
Moscou fez a mediação entre
os sírios curdos e o governo central em Damasco mesmo quando aqueles eram
controlados pelos Estados Unidos por anos. Putin se comportou de maneira
inteligente com Israel mesmo quando acusou Tel Aviv de provocar a morte de seus
oficiais, e manteve-se em relativamente neutro no conflito entre Irã e Israel.
Por outro lado, Tel Aviv
jamais pensou que a Síria poderia ser reunificada. Hoje Damasco tem drones
armados, mísseis de cruzeiro e de precisão, mísseis supersônicos russos anti
navios – e sobreviveu depois de todos esses anos de Guerra e destruição de sua
infraestrutura.
Israel não tem mais a perspectiva de um aliado
no Estado Curdo (Rojava). Seu sonho foi adiado por décadas e com ele a divisão
de Síria e Iraque. O “Acordo do Século” agora não faz qualquer senso e o acordo
de não agressão com países árabes virou miragem. Tudo o que o principal
conselheiro de Trump, o primeiro ministro Netanyahu, queria, perdeu sentido, e
agora, Israel tem que lidar com a presença russa no Oriente Médio e arrostar as
consequências da vitória conquistada por Assad, russos e iranianos.
Depois dos curdos, Israel é
o segundo maior perdedor – mesmo que não tenha sofrido danos econômicos e que
nenhuma vida israelense tenha sido perdida em combate. No cenário das eleições
israelenses, as ambições de Netanyahu agora são imprestáveis. Israel agora tem
que se preparar para viver lado a lado com Assad, que com certeza quererá as
Colinas do Golã de volta – uma prioridade para Damasco uma vez que comece a
enfrentar a tarefa de reconstrução do país. Ele vem preparando a resistência
local há anos, para o dia em que a Síria finalmente recuperará todo o seu
território.
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