Um império em derrocada: A estratégia militar da Rússia e da China para conter os EUA

 A Failing Empire: Russia and China's Military Strategy to Contain the US
Texto de Federico Pieraccini (Strategic Culture Foundation), tradução de btpsilveira
Ao prestar atenção na paisagem política global do último mês, sobressaem duas tendências. O obsceno poder econômico e militar à disposição dos Estados Unidos está em declínio, enquanto ocorre uma aceleração na criação de uma série de infraestruturas em um mundo multipolar, com mecanismos e procedimentos para conter e limitar os efeitos negativos do declínio (norte)americano neste momento de queda. Esta série de três artigos deverá focar em primeiro lugar no aspecto militar dessas mudanças em andamento, depois nos aspectos econômicos e finalmente, como e porque pequenos países estão transitando do campo unipolar para o terreno multipolar do planeta.

É possível observar uma das consequências tangíveis do declínio do poder militar dos EUA no conflito em curso na Síria. Nas últimas semanas o Exército Árabe da Síria (EAS) e seus aliados completaram a estratégica e também histórica liberação de Deir Azzor, uma cidade sob cerca por mais de cinco anos pelos membros da Al Qaeda e do Estado Islâmico.
Agora, o foco mudou para os campos petrolíferos ao sul da cidade liberada, com uma corrida frenética entre as Forças Democráticas da Síria, apoiadas pelos EUA e pelo EAS, para liberar os territórios ainda na posse do Estado Islâmico. O objetivo final de ambas as forças militares é reivindicar os recursos da Síria e fortalecer a fraca posição dos EUA (que sequer fazem parte das conversações de paz de Astana) nas futuras negociações sobre o futuro do país. Para entender o quanto os sonhos dos EUA sobre a partição da Síria está desabando em fracasso, basta notar as repetidas trapalhadas dos EUA como foi testemunhado na libração de Alepo e depois Deir Azzor, e agora com o EAS e aliados cruzando o Rio Eufrates (apesar das ameaças dos EUA e de seus apaniguados curdos – NT).
Apesar das tentativas de intimidação dos EUA, de suas ameaças e até de ataques diretos, o exército sírio continua a batalhar contra o Estado Islâmico na província de Deir Azzor, avançando para os campos ricos em petróleo da região. Graças à proteção fornecida pela Força Aérea da Federação Russa durante o conflito, Damasco tem sob seus ombros a capa protetiva necessária para fazer frente às tentativas dos Estados Unidos de balcanizar o país.
Outras evidências sobre o fracasso da estratégia dos EUA para dividir o país como ocorreu na Iugoslávia tornam-se evidentes pelo realinhamento estratégico da maioria dos aliados leais de Washington na região e outros locais. Durante as últimas semanas, vários encontros aconteceram em Astana e Moscou entre pessoas como Putin e Lavrov com seus pares da Turquia, Arábia Saudita e Israel.
Estes encontros definiram as diretrizes para o futuro da Síria graças às linhas vermelhas de Moscou, especialmente em relação ao desejo israelense de mudança de regime na Síria e sua atitude agressiva com o Irã. Mesmo os mais fiéis aliados dos Estados Unidos estão começando a planejar o future da Síria como Assad como presidente. Os aliados dos Estados Unidos demonstram uma mudança pragmática direcionada para uma reconciliação com as facções que estão evidentemente vencendo a guerra e claro, darão as cartas no futuro.
O sonho de longa data e os desejos de Xeques (sauditas e cataris) e sultões (Erdogan) de redesenhar a Síria e o Oriente Médio acabou e eles sabem disso. Os aliados de Washington estão decepcionados com a incapacidade dos Estados Unidos de cumprir suas promessas de mudar totalmente o regime em Damasco. Apenas começaram as consequências para os Estados Unidos. Sem uma postura militar capaz de forçar seus adversários e aliados a agir em conformidade com seus desejos, os EUA tem que começar a lidar com uma nova realidade que envolve compromisso e negociação, algo com que os EUA não estão acostumados.
Um exemplo do que pode acontecer se Washington decidir ir contra um antigo aliado pode ser visto na crise do Golfo que envolve o Qatar. Desde o início da agressão contra a Síria, o pequeno emirado tem sido o centro de planos e conspirações destinados a armar e financiar jihadistas no Oriente Médio. Cinco anos depois, com bilhões de dólares desperdiçados e sem ganhar nada de concreto na Síria, o Conselho de Cooperação do Golfo, como esperado, mergulhou em um conflito fratricida entre o Qatar e outros países como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e Egito. Os últimos acusam Doha de financiar o terrorismo, uma verdade inegável. Mas omitem seus próprios laços com o jihadismo (neste quadro o Egito está excluído, pois luta continuamente contra terroristas inspirados na Irmandade Muçulmana, no Sinai), mostrando uma hipocrisia com a qual apenas a imprensa corporativa pode rivalizar.
As consequências das ações de Riad contra Doha, que foram apoiadas em grande parte pelo establishment (norte)americano, parecem, seis meses depois, ter finalmente colocado o Qatar e o Irã juntos, com a reabertura de laços diplomáticos. Eram dois países que estavam durante anos em lados opostos em muitos conflitos no Oriente Médio, um reflexo das divisões ditadas pelas posições, respectivamente, de Teerã e Riad. Parece que já não é bem assim, com Doha e Teerã se aproximando cada vez mais para circum-navegar sanções e bloqueios, evitando dificuldades em comum. Essa mudança só pode ser classificada como uma falha estratégica da Arábia Saudita.
Analisando os últimos seis anos, vemos que uma das razões para o surgimento dos conflitos na Síria tem sempre a ver com o famoso gasoduto que o Irã pretende construir conectando o Iraque e a Síria. Incrivelmente, o final do conflito pode ver o surgimento de uma nova linha de transporte surgindo entre dois países que por anos estavam em lados opostos, divergindo quanto a objetivos estratégicos. Atualmente, Irã e Qatar estão envolvidos em acordos comerciais e existem rumores de que estaria em andamento um esforço conjunto para construir um novo gasoduto que pode cruzar através da Síria e do Iraque, para chegar enfim ao Mediterrâneo. A ideia é explorar em conjunto o maior campo de gás natural do planeta e assim tornar-se um novo fornecedor para a Europa que, aliás, está à procura de diversificar suas importações energéticas. Riad e Washington devem assumir totalmente a responsabilidade para esse fracasso estratégico de proporções titânicas.
Um sinal claro de quão rápido estão mudando as coisas na região e até além dela vem de Israel. Mesmo o Estado Judeu teve que abandonar seu sonho de expansão territorial dentro da Síria, apesar de várias tentativas de Netanyahu de persuadir Putin sobre a suposta ameaça existencial que Israel enfrenta com a presença do Irã na Síria. Pragmático e inteligente, Putin é perfeitamente capaz de fazer Israel saber que qualquer solicitação para impor condições aos russos ou seus aliados na Síria será recusado com firmeza. Mas ao mesmo tempo, Moscou e Tel Aviv podem continuar a buscar um bom relacionamento um com o outro. Os políticos russos são espertos demais para fazer jogos duplos com seus aliados de longa data na Síria ou para subestimar a capacidade que Israel tem para transtornar a região, mergulhando-a no caos. Além disso, Assad convidou a Rússia para entrar na Síria, bem como o Irã e o Hezbollah. Mesmo que Putin quisesse ajudar Netanyahu, o que é altamente duvidoso, a lei internacional proíbe. Se existe algo claro, é que Moscou respeita a lei internacional como poucas nações o fazem. Todas as outras nações estrangeiras operando na Síria, ou voando pelos céus do país, em primeiro lugar não tem o direito de estar ali, muito menos de impor decisões contra um território soberano.
Se o objetivo de Tel Aviv era expandir suas fronteiras ilegais nas Colina do Golã e tentar uma mudança de regime na Síria, a situação não poderia ser mais diferente seis anos depois. O Irã expandiu sua influência na Síria, graças à ajuda providenciada para Damasco no combate ao terrorismo. O Hezbollah fortaleceu sua experiência em combate e seu arsenal, bem como expandiu muito sua rede de contatos e simpatizantes através do Oriente Médio. O Hezbollah e o Irã são visto como pacificadores no Oriente Médio, desempenhando papéis positivos na luta contra a praga do jihadismo terrorista bem como contra Israel e Arábia Saudita, estados que tentam de qualquer maneira apoiar as organizações terroristas com armas e dinheiro. Seis anos depois, Washington, Riad e Tel Aviv se encontram em um ambiente totalmente diferente, com vizinhos hostis, menos parceiros colaboradores e, no geral, um Oriente Médio cada vez mais na órbita das esferas de influência de iranianos e russos.
Temos mais um indicador do declínio (norte)americano no campo militar na Península da Coreia. A República Popular Democrática da Coreia (nome oficial da Coreia do Norte) obteve completa capacidade nuclear através do desenvolvimento de um programa próprio, e não deu bola para as ameaças de (norte)americanos, sul coreanos e japoneses. Para Pyongyang era imperativo criar uma capacidade de dissuasão nuclear para se opor à vontade de muitos políticos (norte)americanos de derrubar o regime na Coreia do Norte. A importância estratégica de uma mudança de regime na Coreia do Norte vem na sequência da estratégia de contenção e cerco da República Popular da China, uma doutrina fracassada conhecida como Pivoteamento para a Ásia.
Mesmo com todo o poder de sua dissuasão nuclear, os EUA são incapazes de atacar a Coreia do Norte por causa do poder de dissuasão convencional que Pyongyang acumulou pacientemente. Embora Trump e seus generais continuem com sua inflamada retórica de fogo e chamas, acabaram mesmo foi por levar a Coreia do Sul e o Japão para um aterrador “jogo da franga” entre duas potências nucleares. Previsivelmente, as palavras de Trump deixam todos de cabelo em pé na região, especialmente a Coreia do Sul, que pode no final pagar o preço mais pesado caso uma guerra venha realmente a acontecer. À luz dessas assertivas, nem é preciso dizer que uma opção militar é simplesmente impensável, com Seul e talvez até mesmo Tóquio prontos para romper relações com seus aliados (norte)americanos no caso de uma ação unilateral desastrosa contra Pyongyang.
Kim Jong-un, assim como Assad e outros líderes mundo afora que enfrentam pressão de Washington entenderam perfeitamente, tirando vantagem do declínio do poder militar dos EUA. Cheios de ameaças vazias, Trump e seu círculo de generais, são incapazes de mudar o curso dos eventos nas mais diferentes regiões do planeta, desde o Oriente Médio até a Península Coreana. Seja através da ação de comparsas ou diretamente, as coisas mudam muito pouco e os resultados permanecem inalterados, mostrando um fracasso contínuo na conquista de objetivos e concretização de intenções.
A regra implícita que guia s ações da política dos Estados Unidos é que se um dado país não pode ser controlado, como é controlado há décadas o regime saudita, subserviente aos interesses (norte)americanos, através de ferramentas como o petrodólar, então este país é inútil e deve ser destruído para impedir outros competidores semelhantes de expandir seus lações com este determinado país. O exemplo da Líbia ainda está presente em nossas mentes. Para sorte do mundo a Rússia entrou militarmente em campo e, em mais de uma ocasião conseguiu, junto com seus aliados, sabotar ou impedir o exército dos Estados Unidos de tomar ações imprudentes (Ucrânia, Síria e Coreia do Norte).
Neste sentido, a derrota de Hillary Clinton, mais que a vitória de Donald Trump. Parece ter instilado algum senso comum no império em declínio, abstraindo-se a forte retórica que persiste. Dá medo só de pensar em uma presidência Hillary no atual ambiente político, com a candidata desembarcando a todo vapor no atual cenário de um conflito contra a Rússia na Ucrânia e na Síria, ou um impasse nuclear com a Coreia do Norte na Ásia.
Trump e seus generis estão se adaptando lentamente a uma nova realidade que demonstra que não é impossível controlar países, mas se torna cada vez mais impossível destruí-los. A velha doutrina de espalhar o caos pelo mundo, com a meta de emergir como poder hegemônico no planeta assim que as cinzas baixassem, agora parece apenas uma pálida e distante memória. Basta olhar para o Oriente Médio, mesmo para a Síria que, apesar da destruição sem precedentes, está a caminho da reconstrução e pacificação.
O poder militar da Rússia, juntamente com o poder econômico da China pode ter desempenhado um papel inestimável para restringir a máquina de guerra dos Estados Unidos. A própria Coreia do Norte conseguiu dar uma passo adiante urdindo o desenvolvimento de dissuasão nuclear e convencional bloqueando dessa maneira os Estados Unidos em sua tentativa de influenciar seus assuntos domésticos através da entrega de caos e destruição.
Mesmo sendo visivelmente difícil para os EUA aceitar isso, pouco a pouco vai assimilando a nova realidade. Depois de quase setenta anos de caos e destruição imperiais através de todo o planeta, os inimigos e amigos dos Estados Unidos estão começando a reagir à situação. Washington foi deixada nas mãos de um presidente cheio de som e fúria, mas uma postura militar que tenha credibilidade agora é coisa do passado.
Os mecanismos financeiros que permitiram aos Estados Unidos gastos militares praticamente infinitos está baseado em um vínculo intrínseco entre o dólar, o petróleo e o papel da moeda (norte)americana como reserva monetária.
A transição do mundo de uma ordem mundial unipolar para a multipolar está profundamente ligada às estratégicas econômicas e diplomáticas da Rússia e da China. O próximo artigo deverá explorar o papel do ouro, investimentos, diplomacia e o Petroyuan, fatores decisivos que estão acelerando a transformação e divisão do poder em escala global.


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