O acordo comercial entre China e Estados Unidos se desgasta. E agora?

junho de 2020 Texto de M K Bhadrakumar – Tradução de btpsilveira
Na medida em que a Casa Branca Compara o presidente chinês Xi Jinping ao líder soviético Joseph Stalin, esquenta o confronto entre China e EUA


A comunidade mundial pode dar um suspiro de alívio porque parece que não haverá uma nova Guerra Fria, desta vez entre Estados Unidos e China. Qualquer Guerra Fria necessita de dois blocos: enquanto Washington demonstra ser incapaz de manter a união de um bloco, Pequim parece desinteressada em reunir e manter um. Simplesmente não tem essa mentalidade. Mas isolar a China da comunidade internacional é coisa mais fácil de dizer do que de fazer, na medida em que a globalização liderada pelos EUA está sendo substituída pela globalização conduzida pela China.

Também não há perspectiva de guerra quente entre os dois países. O que surge no horizonte é um impasse/confronto entre a administração Trump e Pequim em um vácuo geopolítico cuja trajetória depende em grande parte do resultado das eleições presidenciais dos EUA em novembro.
Em maior parte, a comunidade mundial não integra esse impasse, com exceção de dois rebeldes da região “Indo-Pacífico” que se juntaram ao comboio dos Estados Unidos – Índia e Austrália.
Como um todo, a Ásia prefere ficar fora da questão. O Japão, por exemplo, toma cuidado para não provocar a China. Os países da comunidade ASEAN se recusam a tomar partido entre a administração Trump e a China. Na realidade, o grupo ASEAN acabou de assegurar que o acordo de Parceria Econômica Regional Abrangente (Regional Comprehensive Economic Partnership), o qual envolve tanto a China quanto o Japão será assinado ainda neste ano, transformando radicalmente a integração da região Ásia/Pacífico.
A Europa também preferiu ficar de lado, e já começou a trabalhar nos termos do engajamento com a China para uma parceria mais igualitária e equilibrada, atenta à realidade flagrante de que a China se destaca no pós-COVID-19 como a economia menos afetada.
No núcleo, as fobias
Resumindo, todo o imbróglio começou com a decisão do presidente Trump de elevar a China à condição de inimigo, como ponto de apoio para sua reeleição em novembro.
Trump achou que essa estratégia esperta faria dele o ganhador de tudo no final. Por um lado, ele assumiu que o acordo “Fase 1” de janeiro deste ano deveria obrigar a China a comprar mais de 200 bilhões em produtos (norte)americanos entre eles massivas quantidades de produtos agrícolas, o que inevitavelmente exibiria sua política externa como um sucesso inegável.
Por outro lado, Trump achou muito útil projetar-se como o presidente “mais duro” em relação à China – um autorretrato que ele usa para impressionar a galera doméstica e ao mesmo tempo diferenciar sua candidatura de seu oponente mais proeminente, o democrata John Biden, ao qual Trump lança a pecha de ser incapaz de fazer frente à China “assertiva”.
Além disso, conjurando o “Wuhan vírus”, Trump espera desviar a atenção de sua incompetência e fracasso no desafio de manejar a pandemia da COVID-19 que provavelmente crescerá em importância como a Nêmesis de sua campanha presidencial.
Sem dúvida nenhuma, Pequim pouco se importaria em servir de saco de pancadas para que Trump parecesse “forte” como político em ano eleitoral. Ocorre que a administração Trump equivocadamente agiu para criar ligação entre os planos eleitorais de Trump e o campo diplomático para organizar uma maneira de estabelecer as fundações de estratégia futura semelhante à Guerra Fria contra a China sob a liderança dos Estados Unidos.
Toda essa arquitetura se baseou em leitura catastroficamente equivocada de que a pandemia da COVID-19 teria atingido letalmente a China, atrasado seu crescimento econômico, o que por sua vez levaria o público a se desapontar, alienando-se do Partido Comunista Chinês, o que representaria desafios enormes e sem precedentes para a liderança de Xi Jinping.
Em outras palavras, pela narrativa (norte)americana, o momento atual representava oportunidade rara para desacreditar e isolar a China, destruindo suas perspectivas de crescer como superpotência que rivalizasse com os Estados Unidos. Assim, a diplomacia (norte)americana, sob o comando do Secretário de Estado Mike Pompeo (antigo sargento no exército dos EUA que substituiu James Mattis, general condecorado e com mentalidade mais cautelosa) mudou repentinamente de rumo para adotar uma agenda anti-China como seu foco principal.
Nos últimos anos, enquanto Trump lançava a guerra de tarifas EUA/China, Pompeo entrou em modo turbo com uma obsessiva campanha diplomática à la Churchill – “lute contra eles nas praias” – que ia por um  lado do apoio aos protestos e conflitos em Hong Kong, o discurso sobre as alegadas supressões dos direitos dos muçulmanos uigures, as fortes tentativas de criar um sistema de alianças com Índia e Austrália para conter a China, a atitude militar cada vez mais agressiva apresentada no Mar do Sul da China, a retirada da política intocável vigente desde 1972 de “Uma China”, uma campanha global de vilificação contra a empresa Huawei e a tecnologia chinesa 5G até uma série de movimentos, por outro lado, para reverter a política ampla de relacionamento bilateral entre China e Estados Unidos (incluindo mais tarde as sanções e controle de vistos de entrada), tudo dentro de eventual política de longo prazo para “cortar completamente” as relações entre Estados Unidos e China.
A atitude chinesa em relação ao mapa traçado por Pompeo tem sido largamente reativa. Evita-se provocar os EUA ou agir contra seus interesses principais regional ou globalmente. Seus contra-ataques incluem principalmente:
o fortalecimento do entendimento entre China e Rússia; 
aberturas para países membros da União Europeia (especialmente Alemanha e França) para parceria mutuamente benéfica baseada em respeito e confiança mútuos; 
criação de nova cadeia de suprimentos em preparação para um eventual corte completo de relações com os Estados Unidos;
focar em inovação e desenvolvimento doméstico em tecnologia;
amenizar as tensões com o Japão; 
“regionalização” de suas políticas de globalização (o grupo ASEAN substituiu os Estados Unidos como o principal parceiro comercial da China);
usar a Iniciativa Cinturão e Rota (BRI, na sigla em inglês – NT) para impulsionar a globalização liderada pela China (incluindo o mapeamento de uma Rota da Seda da Saúde para posicionar o país como líder na área e da saúde na pandemia da COVID-19); e, claro,  
Rejeitar com força total a interferência dos EUA em Hong Kong ou nos assuntos internas chineses e conter possíveis ameaças à sua “soberania territorial”.
Mesmo passando um pente fino, não é possível qualificar qualquer desses movimentos como “antiamericanos” 
Mitos desfeitos
No entanto, as coisas começaram a mudar em semanas e meses recentes quando o show itinerante de Pompeo começou a alvejar e vilificar cada vez mais frequentemente o Partido Comunista Chinês, pintando o venerável partido fundado por Mao um século atrás em 1921 como a fonte de todo o mal no planeta.
É bem possível que a diplomacia (norte)americana tenha sido iludida pela (falsa) noção de que a base social do PCC fora dramaticamente enfraquecida pelo coronavírus e que a manutenção de Xi Jinping no poder periclitava, abrindo oportunidade histórica para acabar com o legado da revolução chinesa, similar à que os EUA explorou brilhantemente em 1980 quando destruiu a União Soviética enfraquecida e enterrou o legado bolchevista.
De fato, a narrativa predominante entre especialistas em assuntos da China nos EUA (e também entre analistas indianos) é que Pequim estava sob pressão intensa devido ao desarranjo em seus assuntos domésticos ao ponto da liderança ter que “flexionar os músculos” no exterior de maneira forçada para simular poder e estabilidade política em casa.
Paradoxalmente, os dados empíricos mostram outro cenário – na realidade Trump é que se encontra sob grande pressão para tentar projetar a si mesmo nas eleições deste ano como o “homem forte” capaz de liderança decisiva, pressão esta decorrente da polarização e de condições assemelhadas a uma guerra civil na economia política dos EUA, alimentada pela pandemia da COVID-19, depressão econômica profunda, conflitos sociais e raciais e encerrada inexoravelmente dentro de um sistema de dois partidos em combate político mortal, dividindo a nação ao meio em duas metades distintas.
Nas últimas pesquisas, Joe Biden aumentou sua liderança para 19 pontos percentuais, o que é assustador. Caso a pandemia se torne mais aguda nas próximas semanas e meses, perspectiva bem provável, o julgamento político de Trump entra em modo de julgamento severo – em particular sua decisão fatídica de reabrir a economia mesmo antes do achatamento da “curva” da COVID-19.
Previsivelmente, a paciência da China se tornou curta e está batendo de volta justamente onde dói mais em Trump – escusando-se da obrigação de comprar centenas de bilhões dos produtos (norte)americanos a menos que Trump se retrate de suas políticas hostis em relação a China.
A China está retaliando com plena consciência que o lobby dos agricultores é segmento importante da base de apoio de Trump. Trata-se de golpe mortal (Trump está correndo atrás de Biden no estado chave do Wiscosin).
Enquanto isso começa a emergir a partir de dados comerciais recentes que o balanço do resultado da propagandeada “guerra comercial” de Trump com a China é largamente oposto ao que era esperado pela Casa Branca.
Ironicamente, como dois estudiosos sobre a China da Carnegie Endowment for International Peace salientaram semana passada, “as tarifas não resultaram em melhora real no balanço subsequente dos Estados Unidos, enquanto o superávit comercial da China aumentou e seus mercados de exportação se tornaram mais diversificados”
Os dados mostram que “a redução de Trump do déficit comercial bilateral com a China foi muito onerosa, com uma contração significativa na atividade econômica e o crescimento inesperado do excedente comercial global chinês”.
Na medida em que a importação dos EUA a partir da China caiu $87.3 bilhões de dólares de um ano para o outro, essa queda resultou em preços mais altos para vendedores do varejo e famílias em vez de prejudicar o superávit comercial chinês. Também não provocou aumento de empregos entre a classe operária da indústria manufatureira (norte)americana, resultado esperado por Trump.
A China também compensou efetivamente a queda das exportações para os EUA através do aumento de vendas para praticamente o resto do mundo inteiro. Apenas as exportações chinesas para os países do grupo ASEAN cresceram $38.5 bilhões de dólares. As tarifas retaliatórias sobre importações dos Estados Unidos diminuíram a conta das importações em mais $33 bilhões de dólares.
Sabe-se agora que apesar da guerra comercial com os Estados Unidos, a China terminou o ano de 2019 com um excedente comercial de $60 bilhões de dólares. Isso apesar do fato que, como o estudo da Carnegie esclarece,
“O domínio da indústria manufatureira global pela China vem diminuindo gradualmente a partir do seu ápice em 2015, devido as mudanças estruturais da economia chinesa, tais como sua graduação contínua em vestimentas e tecidos, declínio do país como destinação final para montagem e reestruturação em relação ao consumo e prestação e serviços, que são menos intensivos que o capital de investimento”.
O que as tendências relatadas acima revelam claramente é que a guerra comercial com os Estados Unidos e as mudanças induzidas pela pandemia na cadeia de suprimentos só vão acelerar as tendências que Pequim estabeleceu como sua estratégia econômica para um país de renda média.
Em suma, Trump não conseguiu realizar seu objetivo de reduzir déficits comerciais e enfraquecer as perspectivas econômicas chinesas. Julgando a partir de investimento, consumo e nível de preços, a economia chinesa não foi afetada de forma significativa pela repressão dos Estados Unidos em comércio, ciência e tecnologia.
Sejam quais forem as mazelas que a economia chinesa sofre atualmente, Trump não é a causa e sim, como um estudioso chinês escreveu recentemente “causada pela contradição entre a oferta e demanda interna, a bolha financeira causada pelos financiamentos de ativos de raiz, que ainda não foi completamente assimilada pela sociedade, e o ciclo acidentado do estímulo da demanda agregada Keynesiana reiteradamente repetida e finalmente pela emissão excessiva de M2. (Falando de forma bem simples, M1 é a oferta monetária [valores monetários em circulação] que inclui apenas dinheiro e depósitos em cheque. M2 é a oferta monetária que inclui o M1 mais “quase dinheiro”. Quase dinheiro são os depósitos de poupança, títulos do mercado, fundos de mútuos e depósitos a prazo. O quase dinheiro não é tão líquido quanto o M1 nem tão propício a servir de meio de troca, mas pode ser rapidamente convertido em dinheiro. Fonte de pesquisa: Investopedia – nota do tradutor)
A guerra não é opção
Nem é necessário dizer que Pequim fez cálculos cuidadosos enquanto traçava a linha vermelha na areia no Havaí no encontro de 17 de junho entre o poderoso membro do Politburo chinês e principal diplomata Yang Jiechi e o Secretário de Estado dos Estados Unidos Mike Pompeo.
A questão crucial é que desde que não há mais diferença significativa de força econômica entre as economias chinesa e (norte)americana, a guerra contra a China deixou de ser uma opção para Washington. Toda a guerra econômica de Trump, a guerra na ciência e tecnologia e até a guerra ideológica não influem na diferença de poder entre EUA e China, que se estreita a passo acelerado a favor da China.
Ao contrário, o surto da pandemia causou perdas pesadas na economia dos EUA, como ficou evidente pelos sucessivos acionamentos do mecanismo de circuit-breaker no mercado de ações (norte)americanos no período desde março. Acrescente-se o impacto cumulativo da taxa de desemprego extremamente alta e a morte de mais de 120.000 pessoas, numa sociedade já em instabilidade social que se torna a cada dia mais letal.
No plano geopolítico, não há compradores da estratégia de Trump para suprimir a China, a não ser Índia e Austrália. O que torna os Estados Unidos mais isolado é o fato de que a União Europeia está tratando de agir de maneira independente em relação à China, na busca de seus próprios interesses, com ênfase da cooperação e parceria europeia com a China, apesar da competição econômica vigorosa entre os dois lados.
A União Europeia insiste que o envolvimento e cooperação com a China é questão “tanto de oportunidade quanto de necessidade”, mesmo continuando com grandes esforços para melhorar as práticas econômicas injustas da China.  A questão é que a Europa é muito dependente da China em comércio e investimento e não pode nem irá compartilhar do obsessivo foco dos Estados Unidos em geopolítica. Muito menos participará de qualquer aventura militar dos EUA contra a China. Mesmo retoricamente, os líderes europeus evitam referência a qualquer ataque contra a China de forma confrontacionista, obstinada ou punitiva. Mais importante, os europeus estão profundamente desconfiados da administração Trump, que entendem ser duvidosa e imprevisível.
Desnecessário afirmar que a atual política da administração Trump de supressão da China e contenção efetiva do futuro desenvolvimento e fortalecimento abrangente do país asiático não tem futuro. Trump sente-se amargurado por ser visto como um “perdedor”, papel que despreza. O azedume é visível. A coisa parece ter se tornado pessoal com o tempo, como demonstrado na extraordinária explosão de fúria na Casa Branca nesta semana, comparando Xi Jinping com Joseph Stalin, como tiranos e Marxista-Leninistas incorrigíveis, o insulto máximo no vocabulário político trumpiano.
Dito isto e polêmicas à parte, Trump é também um realista que sabe muito bem que a política de supressão que a sua administração encetou contra a China em seu primeiro mandato não apenas falhou em alcançar o resultado que queria para alavancar sua reeleição como pouco fez para infligir danos concretos na linha de vida da economia chinesa. Caso consiga um segundo mandato, essa conquista pode levá-lo a ajustar sua política com a China. Um novo começo é possível, desde que haja um novo time para a política externa, bem como não haverá mais necessidade de arrogância para conquistar vantagem eleitoral. Caso isso aconteça, a China certamente responderá a quaisquer aberturas.
De fato, se Biden vencer as eleições é quase certo que ocorrerá uma reviravolta radical. Espera-se que a política de Biden em relação à China seja racional e pragmática, mesmo levando-se em conta que ele foi o coreógrafo do “reequilíbrio” estratégico na Ásia durante a presidência de Barak Obama. Biden e os democratas em geral tem uma atitude mais aberta e relativamente mais positiva para lidar com  o período complicado que virá a seguir no qual a China estreitará rapidamente o fosso de poder que a separa dos EUA.
Canais de diálogo reabrir-se-ão, substituindo a postura rebuscada da presidência Trump, que demonizava a China como uma ameaça existencial. Numa presidência Biden, o clima geral das relações EUA/China só pode melhorar – embora a competição entre Estados Unidos e China deva continuar ferrenha nos campos da alta tecnologia e na imposição de padrões globais, enquanto a economia navega por uma era de progresso tecnológico acelerado e inovações cuja aplicação e difusão rápida pode levar a mudanças abruptas na sociedade.
A questão é que como os países europeus, Biden também terá que lidar com assuntos domésticos – como mudança climática, questões raciais, justiça social, recuperação da economia interna depois da pandemia, etc, que acabará por criar uma matrix (realidade) na qual a coordenação e cooperação com Pequim se tornará uma necessidade estratégica e a atual política de supressão tecnológica da China pelos EUA será temperada pelo efeito urgente decorrente da priorização no manejo das questões domésticas dentro de um contexto internacional.


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