Uma
Oração (norte)americana pelo Iêmen
“Oh, Senhor, nosso Deus, ajudai-nos a reduzir a
carne dos soldados inimigos a pedaços sangrentos com nossas bombas; ajudai-nos
a cobrir sua terra com as formas evanescentes dos patriotas mortos; permiti-nos
abafar o alarido das armas com os gritos de seus feridos retorcendo-se em sofrimento;
ajudai-nos a destruir seus lares humildes com um furacão de fogo; ajudai-nos a
arrancar dolorosamente o coração das viúvas; ajudai-nos a deixá-las sem lar, perdidas
em trapos, fome e sede, na companhia de suas crianças, abandonadas nas ruínas
de sua terra desolada...”
– Da “Prece pela Guerra” – Mark Twain
Neste verão de nosso amor pela
inefável glória e grandeza da nossa República (norte)Americana, vamos lembrar
as altissonantes palavras de Mark Twain e de sua “Oração pela Guerra”, tão
terna e misericordiosa. Vamos elevar nossas graças a Deus e seus cooperadores
múltiplos, por fazer de nossa nação esta excepcional fonte de sabedoria, saúde
e armamentos. Vamos louvar em voz alta nossos fabricantes de armas por seu
altruísmo, seu desprezo pelos lucros e seu compromisso pela continuação da boa
guerra que nenhum preço é alto demais para pagar, com suas vidas perdidas,
nenhuma tão pequena que não possa ser reduzida a cinzas, na eterna busca pela
segurança nacional, hegemonia global e controle inquestionável dos recursos
vitais do mundo inteiro.
Curvemo-nos frente aos senhores
e damas do Pentágono e da CIA, e ante seus mestres soberanos na Casa Branca e
na morada dos legisladores cuja moralidade profunda e compromissada é
claramente evidente, por suas decisões de providenciar bilhões de dólares em
armas para os déspotas esclarecidos da Arábia Saudita. Deus proteja o Rei Salman e seus ministros de
estado, que reinam sobre mares de petróleo, aquele lubrificante pegajoso que mantém
o ronronar de nossos motores e nossa economia bombando com os frutos da
exploração e da expansão do capitalismo.
Agora, enquanto o mundo se torna
cada vez mais quente, os mares cada vez mais altos e os deuses repousam em suas
almofadas de nuvens conspurcadas de gases do efeito estufa, levantemos nossa
voz em louvor à nossa união inquebrantável com a Casa de Saud, guardiã das
chamas eternas que queimam em seus desertos recheados do precioso petróleo.
Senhor nosso Deus, faça com que esses poços titânicos continuem bombeando e
mantenha o fluxo de numerário na direção correta dos cofres da Raytheon,
Textron, General Eletric e nossos (deles) irmãos de armas. Mantenha Senhor os
nossos mísseis e bombas em sua queda incessante, desabando como estrelas
enfeitiçadas nos mercados, mesquitas, aldeias, fazendas e campos do Antigo
Iêmen, o país mais pobre do Oriente Médio, bem ali ao lado do mais rico, a
Arábia Saudita. Oh Deus, nos dê força e determinação para continuar no apoio irrestrito
para essa coligação liderada pelos sauditas em seus ataques sem peias contra o
povo indefeso do Iêmen e contra os lutadores rebeldes em seu seio.
Acima de tudo, Senhor, não
perca de vista a cascata infinita e incessante de tweets caindo sobre nossos
ouvidos e celulares ungidos, aos quais prezamos tanto, e dos quais não nos desviamos
para não correr o risco de perder o último tweet, e assim nos expondo aos
ventos raivosos que rugem ao nosso redor, noticiando o Reino do Mal. Nunca
permita que nos esqueçamos do dever de amarrar Donald Trump no pelourinho a
cada oportunidade, colocando seus pés a queimar no fogo lento pelo crime de
conluio com o Império do Mal. Deixe-nos sempre cientes dos insultos que desabam
sobre Trump através de nossos colegas no alto de seus púlpitos da MSNBC e de
seus peritos que tudo sabem e tudo veem, que perscrutam sob cada pedra e cada
rocha, e que, em cada fenda do Estado de Segurança Nacional conseguem perceber
a pista maliciosa da invasão russa.
Dê-nos Senhor, a força para
fechar nossos corações frente aqueles que tentam enfraquecer nossa firmeza,
usando o ácido corrosivo da compaixão inútil. Faça de nós como ao corajoso
Ulisses, que resistiu à canção das sereias. Que não nos sintamos tentados a atender
aos gritos dos necessitados em locais como o Iêmen, onde nossa grandeza e generosidade,
nossas armas e nosso apoio diplomático permitem que a coalizão saudita continue
a trazer o mítico “furacão de fogo” contra essa terra torturada e pobre.
Que seja feita a sua vontade,
Senhor. Foi Você que ordenou esse sofrimento todo, essa mortandade de carne e
espírito, essa imposição implacável de dor contra o povo do Iêmen. Na verdade,
o que está acontecendo no Iêmen é apenas o cumprimento de sua Palavra Sagrada,
a qual Você ordenou para sinalizar Sua presença no mundo e da graça e mercê que
flui incessantemente de Seu coração imaculado. Mesmo que as pessoas do Iêmen
clamem por misericórdia. Embora suas famílias, aos milhões, tenham perdido suas
moradas, seus meios de subsistência, seu futuro, sua fé em uma vida melhor. Apesar
da fome, da pestilência e da morte que campeia horrenda em sua terra enquanto
os bombardeios aumentam de intensidade e selvageria a cada dia que passa, tudo
é como deve ser, tudo como está escrito no Livro do Tempo.
Oh Senhor nosso Deus, ajude
para que compreendamos e aceitemos a absoluta necessidade de desempenhar o
papel que nos foi dado para entregar ao povo do Iêmen a Sua Onisciência e
Bondade, pois Você entende a justiça inefável e suprema da Guerra e a
devastação que resultou da assistência do nosso congresso, nosso presidente e
nossos militares. Auxilia-nos a estabelecer para os membros equivocados de
nossa Câmara dos Deputados (que votaram contra nossa participação na Guerra do
Iêmen) o caminho de volta para a justiça, do nosso apoio para a Arábia Saudita
e seus aliados tementes a Deus. Com certeza, esses políticos não conseguiram
apreender em sua totalidade a lógica divina por trás de Seus desígnios para o
Iêmen e todo o Oriente Médio.
Não são, Oh Senhor, as lágrimas
das crianças tornadas órfãs, sendo criadas por mães tornadas viúvas, exemplos
de coisas maiores, de um tempo em que a paz e a abundância reinarão incontestes
sobre o povo do Iêmen, enfim subjugado para colher as bênçãos de Sua recompensa?
Como foi no Iraque e na Líbia, assim será no Iêmen, na Síria e no Afeganistão e
em todas as demais nações onde nossos abençoados homens e mulheres em uniformes
levam a luta contra todo tipo de tirania, espalhando pela terra as joias
preciosas da Liberdade e da Democracia.
Venha em nosso auxílio, Senhor,
para que não nos oponhamos nem condenemos a cumplicidade de nossa nação na
destruição do Iêmen e na criação da mais severa crise humanitária do mundo
atual. Que continuemos com a carga insensível de nossa vida diária sem sentir
sequer uma pontinha de preocupação com as vítimas inocentes de nossos líderes
de mente avançada e sua sábia estratégia para uma guerra sem fim contra o
terror. Em vez disso, vamos cantar e louvar a “beleza e eficiência de nossas armas”,
a nobreza de nossas causas. Com Sua ajuda, Oh Senhor, teremos sucesso no
emprego de todos os instrumentos da guerra para realizar Seus santos planos de
paz para toda a Terra.
São tolos aqueles que não conseguem
enxergar a clareza de Seu amor pela humanidade. As armas e munições que providenciamos
para os sábios líderes da Arábia Saudita e seus aliados regionais com certeza
trabalham para promover Sua visão mais complacente daquilo que nossa raça consegue
alcançar. Veja a beleza das crianças inocentes sofrendo em camas de hospital ou
o abraço dolorido de suas mães, seus corpos magros como papel se extinguindo
nas chamas da fome e da doença, enquanto os aviões despejam carga após carga de virtuosas bombas e os camponeses que percorrem gritando o campo
para ver se cobrou algum de seus entes queridos. Isso não é prova de sua
imersão radical nos assuntos dos homens? É ou não é uma prova de Sua profunda imanência
nos assuntos dos homens?
Oh Senhor nosso Deus, ajuda
para que permaneçamos em silêncio ante tanto sofrimento, que evitemos lançar
sobre ele nossos olhos, que continuemos a fingir que nossas vidas
insignificantes não são os mesmos poderes em ação, mesmo que a história
demonstre o contrário, e os profetas de tempos imemoriais tenham pedido que as
pessoas abrissem seus corações para ouvir os gritos de dor de seus irmãos e
irmãs, que fizessem tudo ao seu alcance para curar os doentes, abrigar os
despossuídos e colocar fim à crueldade de todas as guerras. Finalmente, Senhor nosso
Deus, ajude a cada um de Seus servos para ignorar a sabedoria das eras passadas
e as advertências daqueles que podem talvez se opor à Sua vontade e à vontade dos
Seus servos em todos os governos da Terra, os quais calculam a própria grandeza
pelo número de cadáveres que se amontoam aos seus pés.
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