Administrando o pós-colapso
Texto de DMITRI ORLOV – tradução de btpsilveira
Percebi uma tendência marcante de
pensar que assim que a pandemia de coronavírus cessar tudo voltará ao normal
como antes – talvez até melhor, afinal estarão na praça os carros elétricos
voadores de Elon Musk e as clínicas de mudança de sexo drive-(ou fly)thru ou seja lá o que você
quiser. Uma explicação simples para esse fenômeno é que o povo se recusa a
pensar diferente: todos querem apenas voltar ao que estavam acostumados,
brincando com suas fantasias da maneira que quiserem.
Mais sofisticada é a explicação de
que a nova e desconhecida realidade pós-colapso é puro mistério e de alcance
desconhecido e que muitas pessoas pensando sobre isso se torna muito
desconfortável (se feito da maneira correta) ou totalmente sem sentido (se
consistir em juntar estereótipos a partir de filmes como Mad Max e Waterworld ou
outro tipo qualquer de tema tipo parques pós-apocalíticos)
Aqueles que pensam que o que está
acontecendo não passa de um soluço da natureza, causado por um vírus nem tão
mortal assim e que tudo estará rapidamente de volta ao normal com certeza serão
frustrados. Tomando os Estados Unidos como exemplo, a crise claramente começou
antes do surgimento do vírus, como evidenciado por uma queda forte bem
perceptível da economia física desde 2018, evidenciada por aquelas estatísticas
chatas do mercado, pela queda das vendas e rarefação dos grandes caminhões nas
estradas. Mas isso foi antes que o inferno desabasse.
Desde fevereiro até agora, os EUA
perderam 46 milhões de empregos formais, o que significa mais de um terço de
toda a força de trabalho. A Bloomberg prevê que esses empregos não serão
recuperados no total pelo menos nos próximos seis anos – e mesmo assim só se a
economia tiver um crescimento forte nesse meio tempo. Daí, o Gabinete do
Congresso para o Orçamento previu um declínio de 5,6% no PIB e dez anos para a
recuperação (assumindo-se que o pior já tenha passado), então um crescimento
econômico forte parece relegado a um mero devaneio. Na realidade, o FED está
prevendo um declínio de 52.8% no segundo quarto (a economia dos Estados Unidos
é medida de três em três meses, cada período desses constituindo “um quarto” –
NT), portanto a previsão do Gabinete só é crível para quem acredita em uma
recuperação moldada em “V”, que parece que não acontecerá. Por outro lado,
acredito que essa recessão/depressão/colapso caiu em nossas cabeças com algo
entre a letra “L” e o número “zero”.
Uma expectativa mais razoável é a de
que com a economia já afundando até a metade, outros 20% de empregos formais
certamente desaparecerão nos próximos meses no meio de uma onda de falências
que só não aconteceu até agora por causa de várias iniciativas emergenciais
como medidas temporárias de benefícios para os desempregados, moratória nos
despejos e retomadas de imóveis, prorrogação dos pagamentos de empréstimos
estudantis, três meses de folga nos pagamentos de impostos, etc. Para impedir o
desabamento do castelo de cartas econômico o débito federal dos Estados Unidos
teve que ir de 21 para 28 trilhões de dólares em um período de tempo muito
curto, e qualquer palpite é válido para até onde esse esquema irá, mas parece
existir um consenso que não pode durar para sempre.
Enquanto isso, dados de maio passado
indicam que 26% dos (norte)americanos não consegue comprar comida para se alimentar
sem ajuda do governo, e na medida que esse numero aumenta dia a dia, torna-se
impossível ignorar o fato de que o armário está realmente vazio e que a nação
que uma vez já foi a mais rica do mundo está se tornando uma nação de pedintes.
Quando uma sólida maioria da
população se tornar destituída de bens, o que acontecerá com a maior
superpotência mundial, a nação indispensável, esse farol luminoso da liberdade
e da democracia, encarnação do espírito do – sim, nós podemos – com liberdade e
justiça para todos? No rés do chão, com certeza haverá lixeiras incendiadas aos
montes, montes de lojas saqueadas e lacradas com tábuas, fora dos negócios,
muitos bairros de cidade tornando-se zonas onde a polícia não entra (se é que a
polícia ainda poderá ser encontrada por aí) e presididos por bandidos
pesadamente armados.
Depois que todas as estátuas dos
exploradores imperialistas de antigamente estiverem derrubadas e toda a
população branca tiver que se ajoelhar frente a qualquer povo bonito oriundo do
gueto, com certeza chegará um momento (pelo menos para aqueles, nesta ocasião,
que ainda forem capazes de alguma coisa assemelhada a pensamentos racionais) de
se perguntar o óbvio: o que virá a seguir, se é que algo virá?
Tendo em vista desenvolvimentos
parecidos na Europa, parece razoável concluir, como muitos já o fizeram, que o
capitalismo ocidental entrou na sua crise terminal. Sua existência depende de
expansão contínua tanto do capital quanto dos recursos humanos e físicos, o que
torna o capital útil, logo valioso. Especificamente, os custos de manutenção do
capital (tais como instalações e equipamentos, bem como o pessoal treinado para
operar tudo) são financiados através de empréstimos do futuro, (aposta de que a
economia continuará crescendo continuamente tanto em termos de recurso quanto
de capital), possibilitando o manejo do débito. Ocorre que quanto maior a
economia, maior o capital e isso leva a custos de manutenção maiores, o que por
sua vez requer sempre maiores empréstimos futuros para sua sobrevivência.
Esse esquema só funciona até o esgotamento de algum recurso físico sine qua non. O recurso físico principal
de uma economia industrial (o único tipo que sobrevive) é o petróleo, e com o
colapso do “milagre do óleo de xisto” nos Estados Unidos chegando ao fim, o
ápice do petróleo (convencional) em 2005 mais uma vez se tornará um fator
dominante, impossibilitando qualquer tipo de expansão econômica. Sem expansão
econômica não existe capitalismo, desde que o capital se transforma em um
amontoado de ativos ociosos: navios que não navegam, aviões que não voam e
trabalhadores sem trabalho.
Desde que o termo “capitalismo” foi
inventado por Karl Marx, é natural dar uma olhada no velho e bom Karl para ver
o que ele pensava que poderia acontecer uma vez que o capitalismo esgotasse sua
base de recursos e entrasse em colapso. E ele pensava que o que poderia
acontecer é o que ele gostava de chamar de “comunismo”: uma economia de
subsistência central e racionalmente planejada onde a população poderia
produzir bens que seriam então distribuídos para o consumo público pelo Estado
É claro que essa perspectiva
aterroriza muitas pessoas: de fato, o exemplo mais vívido desse tipo de
comunismo é qualquer campo de extermínio de Pol Pot no Camboja. Evidente que
existem exemplos muito mais satisfatórios (copacetic, no original em inglês) de
vida comunal. Mesmo assim, o maior problema com o comunismo é que parece que as
pessoas não gostam muito disso.
Se o capitalismo não for mais
possível, a maioria das pessoas deveria preferir o socialismo como alternativa.
Mas o socialismo em si depende da existência de um mercado econômico capitalista
para produzir os bens e serviços a serem distribuídos de maneira mais
igualitária do que aconteceria no capitalismo puro. Muitos jovens acreditam que
o socialismo deve ser uma belezinha. Parece que eles entendem o socialismo como
um monte de coisas boas (comida, moradia, educação, cuidados médicos, etc.)
fornecidas gratuitamente pelos ricos sem que precisem se preocupar. Mas e se os
ricos forem ricos apenas em ativos encalhados – os tais navios que não navegam,
aviões que não voam e trabalhadores sem trabalho – o que exatamente eles terão
que valha a pena compartilhar, a não ser certificados de ações de empresas
falidas e títulos governamentais do um governo igualmente falido?
Alguns entre eles ainda estarão em
posição de compartilhar a terra, mas a terra é um recurso, não um bem ou um
serviço, e requer trabalho para sustentar a população – trabalho que talvez possa
ser fornecido por uma comuna.
Então, se o capitalismo falhar, o
socialismo vai de embrulho. Apresento minha “teoria do pote quebrado do
capitalismo”: visualize o capitalismo como um monte de potes de barro cheios de
coisas úteis. Agora, pegue um bom porrete e quebre tudo em pedaços. A seguir,
cole os cacos novamente, formando um monte de potes socialistas. Fácil, não é?
Mas é quando chegamos a uma questão chata: o que você vai colocar nestes potes
socialistas, e onde conseguirá estas utilidades que os encherão?
O jeito é voltar para o comunismo.
Numa situação onde nada funciona, o comunismo oferece certas vantagens. Na
medida em que sob o capitalismo as pessoas são motivadas por uma combinação de
medo e ganância, sob o comunismo as pessoas são motivadas pelo medo e pelo
orgulho: orgulho de um trabalho bem feito (não orgulho por uma autoestima
injustificada) e medo de humilhação (ou algo pior) por fugir das próprias
responsabilidades. Isso funciona muito bem, já que não há muito sobre o que ser
ganancioso, e há pouco perigo de ganância, desde que o objetivo é sobrevivência
e não acúmulo de riqueza. Na realidade, o que leva o comunismo a falhar é o
acúmulo de, que causa comportamentos egoístas e conflitos quanto à melhor forma
de distribuí-la.
Fica assegurado o fracasso do
comunismo no momento em que as pessoas conseguem acumular alguma riqueza (mesmo
baseada no mérito) e daí tentam passá-la para os filhos que não a merecem.
Enquanto sob o capitalismo a riqueza
universal é o objetivo absoluto e não existe distinção entre essencial e
supérfluo, sob o comunismo essa distinção é crucial. No capitalismo, os consumidores
decidem o que querem consumir e podem conseguir ou não com base apenas na sua
habilidade de pagar por isso. A preferência dos consumidores tem força de lei. Ninguém
tem nada a ver como os consumidores fazem para obter o dinheiro (e se o obtêm
ou não). Alguns desses consumidores podem viver luxuriosamente em um excesso
decadente enquanto na sarjeta famílias inteiras (com problemas financeiros
temporários) podem definhar até a morte e nenhuma ajuda seria oferecida (nem é
preciso) para eles, pois isso seria socialismo, não capitalismo.
No comunismo, as necessidades básicas
são fornecidas incondicionalmente, mas podem ser básicas mesmo. Por exemplo,
encanamentos internos é um luxo, o banho é permitido apenas uma vez por semana,
comida é sopa de repolho, mingau e pão, bebida é água e as roupas são um
uniforme padrão para todos. Que isso seja distribuído igualmente entre todos
pode ser considerado um direito, enquanto tudo o que esteja além do básico
exige para distribuição um equilíbrio entre privilégio e responsabilidade: cada
um e qualquer privilégio é responsabilidade de terceiros e entregue ou de boa
ou de má vontade, portanto algum tipo de reequilíbrio é necessário. O supérfluo
e o luxuoso podem até existir (se for tempo de vacas gordas), mas são
distribuídos (não comprados) como prêmio por mérito.
O esquema pode parecer bem austero
para a maioria das pessoas, mas ponderem que mendigos não tem o direito de
escolha. Uma vez que todas as lojas forem saqueadas, todas as estátuas
derrubadas, as cidades forem governadas por bandidos armados e todos estejam
vagando à espera de uma esmola, certa característica benfazeja do comunismo vem
à tona: ele pode começar a partir quase do nada. Tudo o que você precisa é de
alguns indivíduos dedicados, algumas ferramentas, um pouco de sementes e de
gado e um pouco de terra – quanto mais distante e inacessível for o lugar,
melhor. Um ingrediente crucial para fazer o comunismo funcionar é o desespero:
as coisas tem que correr realmente mal antes que pessoas suficientes desejem
pelo menos experimentar.
Tenha em mente um elemento final: o
sucesso do comunismo é questão de escala: tem que ser mantido pequeno. Enquanto
o capitalismo é auto organizado em larga escala, dirigido pela preferência de
consumo entre consumidores e pela eterna pesquisa por lucro entre os produtores;
enquanto o socialismo é meramente um parasita do capitalismo, o comunismo é
estrito e manualmente controlado, um sistema planejado de forma centralizada e
quanto maior for esse sistema, mais difícil fica planificá-lo e fazer com que
funcione corretamente. Tenho muita curiosidade em ver se as tecnologias de
informação contemporâneas, sistemas de sensoriamento remotos e inteligência
artificial podem fazer um comunismo de larga escala mais efetivo, mas isso
ainda está para ser testado. Por enquanto, é provável que seja prudente manter
seus experimentos de comunismo numa escala menor.
Tais experimentos
tornar-se-ão cada vez mais viáveis. Há dois tipos de abordagem para que sejam
iniciados. Uma é conseguir alguma terra, juntar os recursos que você precisa e
iniciar uma comunidade. Aqui, o que é necessário é um pouco de dinheiro (moedas
de ouro ou prata funcionam bem, independentemente da situação econômica em
volta) um caráter forte e inflexível, força física e um grupo unido de pessoas
(grandes famílias costumam funcionar bem). A outra abordagem é procurar por um
lugar propício para iniciar sua comunidade. Nesta fase, é necessário não ter
vícios, afabilidade, humildade e disposição para trabalhar duro.
É encorajador saber que esses
experimentos têm sido tentados por várias vezes na história dos Estados Unidos,
com diversos graus de sucesso. O que tende a provocar o fracasso é sempre
riqueza excessiva, mas dada a situação econômica atual, esse perigo hoje parece
desprezível.
Nota do tradutor: para saber sobre o assunto deste artigo com mais
profundidade, aconselhamos a leitura do livro de Dmitri Orlov Communities that Abide (em inglês).
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