Os “novos” mercenários dos EUA: um breve relato
Texto de Major Danny
Sjursen – militar dos EUA (aposentado). Tradução de btpsilveira
Mercenários da Blackwater |
Tudo
isso encontra muitos paralelos na questão venezuelana. No entanto, mercenários
(norte)americanos e o sistema que os multiplica são relativamente novos. O
golpe abortado expôs a linha difusa entre o público e o privado na atual
máquina de guerra dos EUA. Olhando o passado e o presente não se pode escapar
da impressão de que o fenômeno está aqui para ficar e crescer.
Não
há nenhuma dúvida de que a administração Trump tinha conhecimento prévio da
incursão. Talvez tenha até tomado parte, limitadamente. Se a história regional
dos EUA é indicador confiável, provavelmente tomou. Há tempos Washington busca
a derrubada do presidente Nicolás Maduro e chegou mesmo a oferecer uma
recompensa por sua cabeça recentemente. Além disso, o Secretário de Estado Mike
Pompeo acabou por admitir que os Estados Unidos tinham algo a ver, quando
afirmou que os EUA não tinham “envolvimento direto”.
Contudo,
a maioria das reportagens da mídia focou mais nos detalhes do esquema
destrambelhado. Outros preferiram perfilar o cérebro dos mercenários, antigo boina
verde Jordan Goudreau e sua empresa de
segurança privada, a Silvercop (entretanto, no site da empresa ele prefere ser
chamado de “empreendedor”). De qualquer forma, o apelido inteligente colocado
pela revista Economist, “Baía dos
Leitões”, pegou, e há uma espécie de compreensível fascínio com o fuzil
airsoft, no qual aparentemente confiava um dos invasores.
Não
obstante, se o fracasso na Venezuela parece mais estranho que a ficção é porque
essas aventuras normalmente são mesmo. Mais inquietante, o golpe fracassado
reflete o passado comportamental dos Estados Unidos e evidencia a ascensão dos
mercenários. Também é preocupante a substituição dos veteranos de combate
(norte)americanos por antigos soldados mais tradicionais da Inglaterra, França
ou África do Sul.
Passado Mercenário
Esses
aventureiros (norte)americanos já foram chamados, no século 19, de
“flibusteiros” e invadiram repetidamente países Latino Americanos. A maioria
queria apenas saquear, mas alguns até esperavam anexar novos estados escravizados
à União. Um flibusteiro famoso (William Walker -NT)chegou a instalar-se
brevemente como Presidente da Nicarágua. Contudo, mesmo com essas invasões
recebendo constantemente financiamento de eminentes senhores de escravos, a
conexão com Washington sempre foi tênue, na melhor das hipóteses.
A
verdadeira era de ouro para a contratação de mercenários dos Estados Unidos foi
a Guerra Fria. Mas mesmo então, Washington contratava poucos mercenários
(norte)americanos. Predominavam os veteranos de guerras imperiais, chineses
anti comunistas e exilados cubanos. Os Estados Unidos pagavam esses lutadores
para instalar e apoiar ditadores de extrema direita ou derrubar governos que
fossem, mesmo que vagamente, de esquerda.
Nos
anos 1950, os Estados Unidos empregaram 15.000 soldados exilados que tinham
fugido de Burma (atualmente Myanmar – NT) depois da guerra civil da China. A
seguir, Washington os usou para desafiar o governo da China Comunista, impor
disciplina ao governo local e, alegadamente, contrabandear heroína para os EUA
através da CIA. Também recrutou chineses exilados para pilotar aviões em
bombardeios na que era então a sua maior operação encoberta: derrubar o
presidente Indonésia, Sukarno, que não queria cooperar. A seguir, Washington
apoiou o novo homem forte do país – chegando até a fornecer listas de membros
do Partido Comunista e olhando para o lado enquanto ele promovia um massacre de
esquerdistas onde morreram meio milhão de pessoas em uma questão de meses. Mais
bem conhecida foi a desastrosa “operação Baía dos Porcos” liderada pela CIA em
1961, onde se tentou a invasão da ilha de Cuba, liderada por Fidel Castro,
usando cubanos auto exilados. O que quase não se menciona é a campanha de
terror e sabotagem deflagrada pela agência de espionagem contra a Ilha por
décadas, usando cubanos expatriados.
Em
meados dos anos 1960, a CIA organizou e financiou mercenários europeus – entre
os quais o famoso britânico “Mad Mike” Hoare, para suprimir uma rebelião
vagamente socialista no Congo Oriental. Também colocaram em operação uma força
aérea privada pilotada por cubanos exilados. Eles bombardearam rebeldes e
transportaram 500 paraquedistas belgas (os odiados antigos colonizadores do
país) para a luta. Ocorre que os Estados Unidos perderam o controle sobre seus
contratados, que desencadearam uma fúria abusiva. Um mercenário recorda o cerco
e tomada de uma cidadela congolesa: “depois da invasão e saque, seguiu-se a
matança... três dias de execuções, linchamentos, torturas, gritos e terror”.
Resiliente,
a CIA montou um novo exército mercenário em 1974, para apoiar sua facção
favorita na guerra civil de Angola. A agência adiantou $500.000 dólares em
dinheiro para Bob Denard, infame soldado da fortuna e veterano do Congo, o qual
providenciou vinte colegas franceses. Mais uma vez, os Estados Unidos
adicionaram colonialistas derrotados, recrutando 300 colonizadores portugueses
para a campanha. De acordo com o chefe de missão da CIA, o ponto principal era
a possibilidade de negação.
Mercenários parece ser a resposta, e de preferência
europeus, com as habilidades militares necessárias e talvez experiência na
África. Desde que não sejam (norte)americanos...
Embora
os conceitos principais tenham sobrevivido, a operação falhou miseravelmente.
Os novos mercenários (norte)americanos
Há
três fases principais na tendência do moderno recrutamento de mercenários.
Depois da Segunda Guerra Mundial, grande parte dos soldados da fortuna veio de
impérios em declínio. A maioria era composta de veteranos desiludidos no final
das “guerras imperiais sujas” no Quênia, na Algéria, Vietnã, Congo, Angola e
Moçambique. Muitos buscavam fortuna, ou glória, ou aventura, mas a maioria
mantinha conexões com os governos de sua pátria. Isso foi particularmente
sentido na Meca dos mercenários modernos: a Guerra Civil do Congo (1960/65).
Ali, os mercenários britânicos foram apoiados tacitamente por facções
conservadoras no parlamento, ligadas aos interesses de mineradoras. Um dos
principais desses mercenários era irmão de um parlamentar eminente. O
contingente que veio da França era considerado mais político – sempre descritos
como “fanáticos” – e operavam como um exército não oficial da política
francesa neoimperial.
Na
medida em que esta geração foi morrendo, veteranos experientes dos dois últimos
regimes colonizadores dominaram os negócios entre os mercenários. Milhares de
soldados brancos foram desmobilizados depois que a Rodésia e o regime de
apartheid na África do Sul finalmente sucumbiram ao domínio legal da maioria.
Muitos desses veteranos desempregados entre os Selous Scouts da Rodésia e do 32º
Batalhão da África do Sul (esta última a unidade de Leonardo DiCaprio no filme
Diamantes Sangrentos – NT) se transformaram em armas de aluguel. A maioria
tinha servido em conflitos anteriores: A Guerra de Bush na Rodésia (1964/79) e
na Guerra de Fronteira da África do Sul (1966/89). Nos anos 1990, mais
corporativos, eles formaram companhias militares privadas (CMPs)
pseudo-oficiais.
A
mais famosa, Soluções Executivas (EO na sigla em inglês – NT), vendeu seus
serviços em Angola, Sierra Leone e Papua Nova Guiné, enriquecendo suas
lideranças com diamantes oriundos das zonas em conflito e outras concessões de
mineração. Os mercenários brancos eram odiados pela maioria dos africanos e a
EO teve que ser renomeada sucessivamente até ser obrigada a se dissolver. No
entanto, alguns desses antigos empregados pela firma se juntaram numa tentativa
farsesca de golpe em 2004, na Guiné Equatorial, financiada pelo filho da antiga
Primeira Ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher. De acordo com o líder do
grupo, Thatcher encorajou os mercenários para derrubar em seguida Hugo Chavez
da Venezuela, predecessor de Maduro. Já em 2015, quadros antigos da EO estavam
lutando na atual Nemesis dos Estados Unidos na África na Nigéria, o Boko Haram.
Até
há pouco tempo, poucos (norte)americanos podiam ser contados entre os
mercenários. Enquanto centenas – muitos veteranos do Vietnã – lutaram na
Rodésia nos 1970, compuseram uma exceção rara. No entanto, as guerras
intermináveis na sequência de 11/09, produziram um excesso de jovens
(norte)americanos veteranos de combate. Atingidos com força pela quebra
econômica de 2008 – e no momento encarando desemprego crescente com a pandemia
– muitos veteranos da “Guerra contra o Terror” recebem alegremente salários de
seis dígitos de companhias privadas de segurança. Uma das primeiras e a mais
famosa foi uma espécie de reedição da EO: Blackwater USA. Seu fundador e CEO
era um ex fuzileiro naval, Erik Prince.
O futuro dos soldados da fortuna
O
modelo Blackwater lançou um padrão influenciado sem dúvida pela pequena organização
Silvercorp de Groudeau, ao mesmo tempo pressagiando o provável futuro dos
mercenários (norte)americanos. Prince é um fundamentalista religioso, militar
fanático de extrema direita e desde o início, um aliado de Trump. Sua irmã é a
atual Secretária para a Educação Betsy DeVos. Pense em dois irmãos poderosos.
No
início das “Guerras Contra o Terror”, a administração de George W. Bush
contratou a Blackwater para fornecer segurança no Afeganistão e no Iraque.
Neste, a companhia de Prince se tornou tragicamente famosa pela violência
excessiva de seus funcionários. Servi em Bagdá na época em que os mercenários
da Blackwater balearam e mataram 14 civis, - “sem causa”, de acordo com o FBI.
A retaliação anti (norte)americana era previsível e compreensível, desde que a
maioria dos iraquianos não distinguem (com razão) entre ocupantes públicos e
privados. Não obstante, as condenações criminais de guardas da Blackwater e
recriminações de oficiais do exército não foram suficientes para impedir o
crescimento da maré das empresas militares privadas. Nem fizeram com que Prince
perdesse sua proeminência.
A
eleição de Donald Trump gerou energia renovada e novos esquemas para o antigo
CEO. Desde 2017 Prince mantém o presidente informado sobre planos para
privatizar completamente a guerra do Afeganistão, e recrutou antigos agentes de
espionagem para se infiltrar em grupos liberais. Inicialmente, consta que Trump
estava interessado, mas ultimamente parece ter desistido completamente de novas
operações no cemitério de impérios. Isso não bastou para fazer cessar a mente
buliçosa de Prince. Antes que Goudreau tomasse sua frente, Prince aparentemente
chegou a considerar criar seu próprio exército mercenário para derrubar o
governo de Maduro na Venezuela.
Se
é verdade que Prince perdeu a batalha do Afeganistão, não é menos verdade que
seu projeto mais amplo de privatização venceu a guerra. Mesmo levando em
conta que Washington ainda contrata mercenários europeus para “orientar” seus
representantes suspeitos na Somália, o modelo BlackWater/Silvercorp tornou-se o
novo normal. Depois da Guerra Fria, o Pentágono diminuiu o tamanho exagerado de
exército através da privatização do posições chaves de apoio. Ao mesmo tempo,
terceirizou muitas tarefas de proteção. Na invasão do Iraque de 2003 a
proporção de terceirizados para proteção foi dez vezes maior que tinha sido na
Primeira Guerra do Golfo (1991). Assim, percebe-se que as ocupações do Iraque e
do Afeganistão alterou realmente a máquina de guerra dos Estados Unidos. Apesar
dessas enormes mudanças, a proporção entre terceirizados/soldados regulares foi de apenas 1 por 10 durante a Guerra do Golfo. Por volta de 2016, os
terceirizados foram superados número de tropas uniformizadas na razão de apenas
três por um no Afeganistão.
Percebam,
porém, que existe um método na loucura de Washington. Altas taxas de mortes no
auge das guerras do Afeganistão e Iraque demonstram que soldados voluntários
que voltam para o país em caixões embandeirados despertam na opinião pública
uma raiva incômoda para os governantes. Por outro lado, poucos americanos sabem
ou sequer se preocupam com o fato de que
morrem mais terceirizados que soldados regulares nas guerras em curso.
Portanto, parte da cínica, mas brilhante estratégia dos mercenários, é que a
privatização ajuda a viabilização de guerras intermináveis.
Em
seu discurso do Estado da União de 2019, o presidente Trump declarou
enfaticamente: “Grandes nações não lutam
guerras intermináveis”. Não que ele tenha interrompido alguma.
Talvez
o que ele tenha querido dizer foi que: “Elas
pagam para que outros lutem em seu lugar”.
Danny Sjursen é um oficial militar
aposentado do exército dos Estados Unidos e contribui com seus artigos para
vários sites. Seus trabalhos já apareceram no NYTimes, LATimes, The Nation,
Huff Post, The Hille Tom Dispatch, entre outros.
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