Os “novos” mercenários dos EUA: um breve relato

Texto de Major Danny Sjursen – militar dos EUA (aposentado). Tradução de btpsilveira

Mercenários da Blackwater
Embora seja uma história esquisita, subsumida por outros acontecimentos, a fracassada tentativa de invasão da Venezuela mês passado não deveria espantar ninguém. Há muito tempo os Estados Unidos usam mercenários para fazer seu trabalho sujo. Os mercenários fornecem aos EUA distância dos eventos e possibilidade de negação caso as operações fracassem. Foi assim que, durante a guerra fria, os Estados Unidos julgavam poder limitar protestos tanto externos quanto domésticos. Os governantes esperavam que mercenários lhes fornecessem alternativas para pântanos sangrentos e caros como aconteceu nas guerras no Vietnã e Iraque. Tradicionalmente, a maioria desses pistoleiros era contratada no estrangeiro – antigos soldados dos impérios europeus em declínio.


Tudo isso encontra muitos paralelos na questão venezuelana. No entanto, mercenários (norte)americanos e o sistema que os multiplica são relativamente novos. O golpe abortado expôs a linha difusa entre o público e o privado na atual máquina de guerra dos EUA. Olhando o passado e o presente não se pode escapar da impressão de que o fenômeno está aqui para ficar e crescer.

Não há nenhuma dúvida de que a administração Trump tinha conhecimento prévio da incursão. Talvez tenha até tomado parte, limitadamente. Se a história regional dos EUA é indicador confiável, provavelmente tomou. Há tempos Washington busca a derrubada do presidente Nicolás Maduro e chegou mesmo a oferecer uma recompensa por sua cabeça recentemente. Além disso, o Secretário de Estado Mike Pompeo acabou por admitir que os Estados Unidos tinham algo a ver, quando afirmou que os EUA não tinham “envolvimento direto”.

Contudo, a maioria das reportagens da mídia focou mais nos detalhes do esquema destrambelhado. Outros preferiram perfilar o cérebro dos mercenários, antigo boina verde  Jordan Goudreau e sua empresa de segurança privada, a Silvercop (entretanto, no site da empresa ele prefere ser chamado de “empreendedor”). De qualquer forma, o apelido inteligente colocado pela revista Economist, “Baía dos Leitões”, pegou, e há uma espécie de compreensível fascínio com o fuzil airsoft, no qual aparentemente confiava um dos invasores.

Não obstante, se o fracasso na Venezuela parece mais estranho que a ficção é porque essas aventuras normalmente são mesmo. Mais inquietante, o golpe fracassado reflete o passado comportamental dos Estados Unidos e evidencia a ascensão dos mercenários. Também é preocupante a substituição dos veteranos de combate (norte)americanos por antigos soldados mais tradicionais da Inglaterra, França ou África do Sul.

Passado Mercenário

Esses aventureiros (norte)americanos já foram chamados, no século 19, de “flibusteiros” e invadiram repetidamente países Latino Americanos. A maioria queria apenas saquear, mas alguns até esperavam anexar novos estados escravizados à União. Um flibusteiro famoso (William Walker -NT)chegou a instalar-se brevemente como Presidente da Nicarágua. Contudo, mesmo com essas invasões recebendo constantemente financiamento de eminentes senhores de escravos, a conexão com Washington sempre foi tênue, na melhor das hipóteses.

A verdadeira era de ouro para a contratação de mercenários dos Estados Unidos foi a Guerra Fria. Mas mesmo então, Washington contratava poucos mercenários (norte)americanos. Predominavam os veteranos de guerras imperiais, chineses anti comunistas e exilados cubanos. Os Estados Unidos pagavam esses lutadores para instalar e apoiar ditadores de extrema direita ou derrubar governos que fossem, mesmo que vagamente, de esquerda.

Nos anos 1950, os Estados Unidos empregaram 15.000 soldados exilados que tinham fugido de Burma (atualmente Myanmar – NT) depois da guerra civil da China. A seguir, Washington os usou para desafiar o governo da China Comunista, impor disciplina ao governo local e, alegadamente, contrabandear heroína para os EUA através da CIA. Também recrutou chineses exilados para pilotar aviões em bombardeios na que era então a sua maior operação encoberta: derrubar o presidente Indonésia, Sukarno, que não queria cooperar. A seguir, Washington apoiou o novo homem forte do país – chegando até a fornecer listas de membros do Partido Comunista e olhando para o lado enquanto ele promovia um massacre de esquerdistas onde morreram meio milhão de pessoas em uma questão de meses. Mais bem conhecida foi a desastrosa “operação Baía dos Porcos” liderada pela CIA em 1961, onde se tentou a invasão da ilha de Cuba, liderada por Fidel Castro, usando cubanos auto exilados. O que quase não se menciona é a campanha de terror e sabotagem deflagrada pela agência de espionagem contra a Ilha por décadas, usando cubanos expatriados.

Em meados dos anos 1960, a CIA organizou e financiou mercenários europeus – entre os quais o famoso britânico “Mad Mike” Hoare, para suprimir uma rebelião vagamente socialista no Congo Oriental. Também colocaram em operação uma força aérea privada pilotada por cubanos exilados. Eles bombardearam rebeldes e transportaram 500 paraquedistas belgas (os odiados antigos colonizadores do país) para a luta. Ocorre que os Estados Unidos perderam o controle sobre seus contratados, que desencadearam uma fúria abusiva. Um mercenário recorda o cerco e tomada de uma cidadela congolesa: “depois da invasão e saque, seguiu-se a matança... três dias de execuções, linchamentos, torturas, gritos e terror”.

Resiliente, a CIA montou um novo exército mercenário em 1974, para apoiar sua facção favorita na guerra civil de Angola. A agência adiantou $500.000 dólares em dinheiro para Bob Denard, infame soldado da fortuna e veterano do Congo, o qual providenciou vinte colegas franceses. Mais uma vez, os Estados Unidos adicionaram colonialistas derrotados, recrutando 300 colonizadores portugueses para a campanha. De acordo com o chefe de missão da CIA, o ponto principal era a possibilidade de negação.

Mercenários parece ser a resposta, e de preferência europeus, com as habilidades militares necessárias e talvez experiência na África. Desde que não sejam (norte)americanos...

Embora os conceitos principais tenham sobrevivido, a operação falhou miseravelmente.

Os novos mercenários (norte)americanos

Há três fases principais na tendência do moderno recrutamento de mercenários. Depois da Segunda Guerra Mundial, grande parte dos soldados da fortuna veio de impérios em declínio. A maioria era composta de veteranos desiludidos no final das “guerras imperiais sujas” no Quênia, na Algéria, Vietnã, Congo, Angola e Moçambique. Muitos buscavam fortuna, ou glória, ou aventura, mas a maioria mantinha conexões com os governos de sua pátria. Isso foi particularmente sentido na Meca dos mercenários modernos: a Guerra Civil do Congo (1960/65). Ali, os mercenários britânicos foram apoiados tacitamente por facções conservadoras no parlamento, ligadas aos interesses de mineradoras. Um dos principais desses mercenários era irmão de um parlamentar eminente. O contingente que veio da França era considerado mais político – sempre descritos como “fanáticos” – e operavam como um exército não oficial da política francesa  neoimperial.

Na medida em que esta geração foi morrendo, veteranos experientes dos dois últimos regimes colonizadores dominaram os negócios entre os mercenários. Milhares de soldados brancos foram desmobilizados depois que a Rodésia e o regime de apartheid na África do Sul finalmente sucumbiram ao domínio legal da maioria. Muitos desses veteranos desempregados entre os Selous Scouts da Rodésia e do 32º Batalhão da África do Sul (esta última a unidade de Leonardo DiCaprio no filme Diamantes Sangrentos – NT) se transformaram em armas de aluguel. A maioria tinha servido em conflitos anteriores: A Guerra de Bush na Rodésia (1964/79) e na Guerra de Fronteira da África do Sul (1966/89). Nos anos 1990, mais corporativos, eles formaram companhias militares privadas (CMPs) pseudo-oficiais.

A mais famosa, Soluções Executivas (EO na sigla em inglês – NT), vendeu seus serviços em Angola, Sierra Leone e Papua Nova Guiné, enriquecendo suas lideranças com diamantes oriundos das zonas em conflito e outras concessões de mineração. Os mercenários brancos eram odiados pela maioria dos africanos e a EO teve que ser renomeada sucessivamente até ser obrigada a se dissolver. No entanto, alguns desses antigos empregados pela firma se juntaram numa tentativa farsesca de golpe em 2004, na Guiné Equatorial, financiada pelo filho da antiga Primeira Ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher. De acordo com o líder do grupo, Thatcher encorajou os mercenários para derrubar em seguida Hugo Chavez da Venezuela, predecessor de Maduro. Já em 2015, quadros antigos da EO estavam lutando na atual Nemesis dos Estados Unidos na África na Nigéria, o Boko Haram.

Até há pouco tempo, poucos (norte)americanos podiam ser contados entre os mercenários. Enquanto centenas – muitos veteranos do Vietnã – lutaram na Rodésia nos 1970, compuseram uma exceção rara. No entanto, as guerras intermináveis na sequência de 11/09, produziram um excesso de jovens (norte)americanos veteranos de combate. Atingidos com força pela quebra econômica de 2008 – e no momento encarando desemprego crescente com a pandemia – muitos veteranos da “Guerra contra o Terror” recebem alegremente salários de seis dígitos de companhias privadas de segurança. Uma das primeiras e a mais famosa foi uma espécie de reedição da EO: Blackwater USA. Seu fundador e CEO era um ex  fuzileiro naval, Erik Prince.

O futuro dos soldados da fortuna

O modelo Blackwater lançou um padrão influenciado sem dúvida pela pequena organização Silvercorp de Groudeau, ao mesmo tempo pressagiando o provável futuro dos mercenários (norte)americanos. Prince é um fundamentalista religioso, militar fanático de extrema direita e desde o início, um aliado de Trump. Sua irmã é a atual Secretária para a Educação Betsy DeVos. Pense em dois irmãos poderosos.

No início das “Guerras Contra o Terror”, a administração de George W. Bush contratou a Blackwater para fornecer segurança no Afeganistão e no Iraque. Neste, a companhia de Prince se tornou tragicamente famosa pela violência excessiva de seus funcionários. Servi em Bagdá na época em que os mercenários da Blackwater balearam e mataram 14 civis, - “sem causa”, de acordo com o FBI. A retaliação anti (norte)americana era previsível e compreensível, desde que a maioria dos iraquianos não distinguem (com razão) entre ocupantes públicos e privados. Não obstante, as condenações criminais de guardas da Blackwater e recriminações de oficiais do exército não foram suficientes para impedir o crescimento da maré das empresas militares privadas. Nem fizeram com que Prince perdesse sua proeminência.

A eleição de Donald Trump gerou energia renovada e novos esquemas para o antigo CEO. Desde 2017 Prince mantém o presidente informado sobre planos para privatizar completamente a guerra do Afeganistão, e recrutou antigos agentes de espionagem para se infiltrar em grupos liberais. Inicialmente, consta que Trump estava interessado, mas ultimamente parece ter desistido completamente de novas operações no cemitério de impérios. Isso não bastou para fazer cessar a mente buliçosa de Prince. Antes que Goudreau tomasse sua frente, Prince aparentemente chegou a considerar criar seu próprio exército mercenário para derrubar o governo de Maduro na Venezuela.

Se é verdade que Prince perdeu a batalha do Afeganistão, não é menos verdade que seu projeto mais amplo de privatização venceu a guerra. Mesmo levando em conta que Washington ainda contrata mercenários europeus para “orientar” seus representantes suspeitos na Somália, o modelo BlackWater/Silvercorp tornou-se o novo normal. Depois da Guerra Fria, o Pentágono diminuiu o tamanho exagerado de exército através da privatização do posições chaves de apoio. Ao mesmo tempo, terceirizou muitas tarefas de proteção. Na invasão do Iraque de 2003 a proporção de terceirizados para proteção foi dez vezes maior que tinha sido na Primeira Guerra do Golfo (1991). Assim, percebe-se que as ocupações do Iraque e do Afeganistão alterou realmente a máquina de guerra dos Estados Unidos. Apesar dessas enormes mudanças, a proporção entre terceirizados/soldados regulares foi de apenas 1 por 10 durante a Guerra do Golfo. Por volta de 2016, os terceirizados foram superados número de tropas uniformizadas na razão de apenas três por um no Afeganistão.

Percebam, porém, que existe um método na loucura de Washington. Altas taxas de mortes no auge das guerras do Afeganistão e Iraque demonstram que soldados voluntários que voltam para o país em caixões embandeirados despertam na opinião pública uma raiva incômoda para os governantes. Por outro lado, poucos americanos sabem ou sequer se preocupam com  o fato de que morrem mais terceirizados que soldados regulares nas guerras em curso. Portanto, parte da cínica, mas brilhante estratégia dos mercenários, é que a privatização ajuda a viabilização de guerras intermináveis.

Em seu discurso do Estado da União de 2019, o presidente Trump declarou enfaticamente: “Grandes nações não lutam guerras intermináveis”. Não que ele tenha interrompido alguma.

Talvez o que ele tenha querido dizer foi que: “Elas pagam para que outros lutem em seu lugar”.


Danny Sjursen é um oficial militar aposentado do exército dos Estados Unidos e contribui com seus artigos para vários sites. Seus trabalhos já apareceram no NYTimes, LATimes, The Nation, Huff Post, The Hille Tom Dispatch, entre outros.

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