O Kazaquistão pode guardar o segredo de uma Grande Eurásia


Nur-sultan, capital do Cazaquistão

Texto de Pepe Escobar em 06 de julho de 2020 – trad. de btpsilveira


A competição sem regras entre Estados Unidos e China pode estar nos levando para a completa fragmentação do atual “sistema mundial” como definido por Wallerstein [sociólogo (norte)americano – NT].


Mesmo assim, quando comparada com o Mar do Sul da China, a península da Coreia, o Estreito de Taiwan, a fronteira Índia/China no Himalaia e latitudes selecionadas do Oriente Médio Estendido, a Ásia Central brilha como o próprio retrato da estabilidade.

Isso é muito interessante, quando se considera que o tabuleiro de xadrez revela o interesse de atores globais de peso se cruzam diretamente no coração da Eurásia.

O que nos leva a uma questão incisiva: como pode o Cazaquistão, o 9ª maior país do mundo, manobrar para permanecer neutro no meio da atual e incandescente conjuntura geopolítica em andamento? Quais características podem ser descritas como parte do paradoxo Cazaque?

De alguma forma, as questões foram respondidas pelo gabinete do Primeiro Presidente Nursultan Nazarbayev. Discuti algumas delas com analistas quando estive no Cazaquistão no último ano. Nazarbayev não pode responder pessoalmente porque estava se recuperando da Covid-19 e está em auto isolamento.

Tudo isso nos remete para o que o Cazaquistão realmente parecia quando a União Soviética dissolveu em 1991. Os cazaques herdaram uma estrutura etnodemográfica muito complexa, com a população falante de russo concentrada no Norte do país; questões territoriais não resolvidas com a China e proximidade geográfica com o Afeganistão, extremamente instável e então em uma calmaria antes da conflagração generalizada entre senhores da guerra nos anos 1990 que criaram as condições para o surgimento do Talibã.

Para piorar as coisas, o Cazaquistão não tem uma costa marítima.

Tudo isso poderia ter levado o Cazaquistão para o limbo político ou a permanecer preso em um cenário balcânico perpétuo.

Temos soft power, vamos viajar

Surge Nazarbayev, estrategista político astuto. Desde o início, ele via o Cazaquistão como protagonista e não como figurante no Grande Tabuleiro de Xadrez da Eurásia.

Bom exemplo foi a organização da Conferência de Interação e medidas para Aumento da Confiança na Ásia (CICA) em 1992, baseada no princípio da “indivisibilidade da segurança asiática”, mais tarde proposta para toda a Eurásia.

Nazarbayev também tomou a decisão crucial de abandonar o que era na época a quarta potência em mísseis nucleares no planeta – e grande carta na manga para relações internacionais. Todo e cada um dos principais atores no arco que vai do Oriente Médio até a Ásia Central sabiam que nações islâmicas selecionadas estavam muito interessadas no arsenal nuclear do Cazaquistão.

Nazarbayev apostou no “soft power” em vez do poder nuclear. Diferente, por exemplo, da Coreia do Norte, ele privilegiou a integração do Cazaquistão na economia global em termos favoráveis ao invés de confiar no poder nuclear para estabelecer a segurança do país. Pavimentou assim o caminho para que o Cazaquistão fosse lembrado como confiável para tratar de negócios de forma neutra e como mediador para relações internacionais.

A confiança e a boa fé para com o Cazaquistão é algo que vi pessoalmente em minhas andanças Eurasianas e em conversas com analistas da Turquia, Líbano, Rússia e Índia.

O melhor exemplo é Astana, atualmente Nur-Sultan, que se tornou o Quartel General de conversações complexas em andamento: o processo de paz da Síria, coordenado pelo Irá, Turquia e Rússia – sequência da crucial e bem sucedida mediação para resolver o impasse entre Ancara e Moscou na sequência do abatimento de um avião Sukhoi SU-24M nas cercanias da fronteira Síria/Turquia em novembro de 2015.

Da mesma forma o assunto turbulento da Ucrânia depois de Maidan/2014, quando o Cazaquistão manejou para manter boas relações tanto com o ocidente quanto com a Rússia e Ucrânia.  

Como mencionei no final do ano passado, Nur-sultan está rapidamente assumindo o papel de uma nova Genebra: a capital da democracia do século 21.

O segredo desse paradoxo cazaque é a capacidade de equilibrar delicadamente as relações com as três maiores potências mundiais – Rússia, China e Estados Unidos – liderando ao mesmo tempo as potências regionais. O gabinete de Nazarbayev chega a corajosamente assumir que Nur-sultan é a locação ideal para as negociações entre China e Estados Unidos: “Estamos profundamente entranhados no triângulo EUA/China/Rússia e construímos relações de confiança com cada um desses países”.

No coração da Eurásia

O que nos leva ao porque o Cazaquistão – e Nazarbayev pessoalmente – estão tão envolvidos em promover seu conceito especial de Grande Eurásia – que coincide com a visão russa e que foi discutido exaustivamente em detalhes no Valdai Club (think thank com sede em Moscou e que foi criado em 2004 – NT).

Nazarbayev conseguiu estabelecer um paradigma no qual nenhuma das grandes potências é compelida a exercer monopólio sobre as manobras cazaques. Isso inevitavelmente levou o Cazaquistão a expandir o alcance de sua política externa.

Estrategicamente, o Cazaquistão está situado no coração da Eurásia, com grandes fronteiras com Rússia e China, e com o Irã no Mar Cáspio. Seu território é nada menos que uma ponte unindo toda a Eurásia.

A perspectiva Cazaque vai além da conectividade (comércio e transporte) e duas bases importantes da Iniciativa Cinturão e Rota (BRI) da China, para chegar perto da visão convergente do ICR e da União Econômica da Eurásia (EAEU) liderada pela Rússia: um único espaço eurasiano integrado.

Nazarbayev vê a integração dos “stões” na Ásia Central com a Rússia e com os países que falam a língua turca, incluindo, claro, a própria Turquia, como a fundação para o seu conceito da Grande Eurásia.

O corolário lógico é que a ordem atlanticista – bem como a predominância Anglo-Americana nas relações internacionais – está destinada a minguar e com certeza não se coaduna com Ásia e Eurásia. Forma-se o consenso pelo mundo afora que a força destinada a refazer a economia global depois da pandemia da Covid-19 – e até um novo paradigma – virá da Ásia

Paralelamente, o gabinete de Nazarbayev toca em ponto crucial: “uma resposta puramente asiática ou oriental não parece capaz de se adequar ao ocidente coletivo, que também está procurando um modelo ideal para a estrutura mundial. A Iniciativa Cinturão e Rota, da China, mostrou que o ocidente e seus países ainda não estão psicologicamente preparados para a liderança da China”.

No entanto, Nur-sultan continua convencida que a única solução possível deve ser exatamente um novo paradigma nas relações internacionais. Nazarbayev argumenta que a chave para resolver o atual conflito não está localizada em Moscou, Pequim ou Washington, mas em algum ponto estratégico de trânsito, como o Cazaquistão, onde os interesses globais se encontram.

Consequentemente, a pressão pelo Cazaquistão – uma das encruzilhadas indispensáveis entre Europa e Ásia, conjuntamente com Turquia e Irã – para tornar-se um ótimo mediador, permitindo que a Grande Eurásia cresça concretamente. Esta é a opção animadora: de outra forma, estaremos condenados a viver através de uma nova Guerra Fria.



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