O real significado da ameaça da Coreia do Norte à Ilha de Guam



Texto de Richard ParkerPolitico Magazine / GGN, tradução de Ricardo Cavalcanti-Schiel

 

Kim Jong-un sabia o que estava dizendo quando ameaçou atacar a Ilha de Guam. Antes que mero blefe na escalada de hostilidades verbais entre Estados Unidos e Coreia do Norte, a declaração agressiva do líder norte-coreano mirava o calcanhar logístico das forças militares norte-americanas no Pacífico, como se dissesse: “nós conhecemos muito bem os seus pontos nevrálgicos, e eles estão ao nosso alcance de tiro”.


Numa tarde úmida de maio na base de Anderson da Força Aérea, na Ilha de Guam, o tráfego aéreo militar parece convergir de todas as partes: [bombardeiros - NT] cinzentos B-52, vindos da Dakota do Norte; KC-130 [Hércules de abastecimento - NT], vindos da Pensilvânia; e C-130 [Hércules de transporte - NT], vindos da Coréia do Sul.

As instruções da torre alertam os pilotos para iniciar sua aproximação a não menos de 60 metros, evitando as áreas de nidificação dos corvos durante a época de reprodução, a ter cuidado com as pistas escorregadias e com travagens intermitentes após o pouso. E, em seguida, vem o sinal padronizado: “Cuidado: tenha extrema atenção quanto ao uso extensivo de aeronaves não tripuladas nas vizinhanças da base aérea da Anderson!”.

À medida que os B-52 começam a aterrissar na pista de 3.350 metros conhecida como 24-Esquerda, um [drone - NT] Global Hawk cinzento [de 40 metros de envergadura], com sensores eletro-ópticos, se prepara na pista 6-Direita, exatamente às 2:30 da tarde. Sua missão é sigilosa, o avião-robô acelera seu motor a jato para taxiar e ganhar velocidade para o início de sua missão de espionagem de 24 horas sobre 5.600 quilômetros de oceano azul do Pacífico.

Essa é a base de Anderson, da Força Aérea dos Estados Unidos, um dos postos militares mais movimentados do mundo ― e um lugar que Kim Jong-un, o jovem rei eremita da Coréia do Norte, quer mandar para os ares. Esse não é apenas um ponto distante no mapa, um troféu colonial esquecido, expropriado durante a Guerra Hispano-Americana [de 1898, que, a pretexto de apoiar o movimento independentista de Cuba, arrebatou para os Estados Unidos o controle não só de Cuba como também de Porto Rico e Filipinas, além de vários outros territórios insulares no Caribe e no Pacífico, e determinou o colapso do Império Colonial Espanhol]. Guam é também um pilar do império global norte-americano, e Kim Jong-un ― com todos seus adereços bufônicos, do cabelo à la Macklemore [o rapper Ben Haggerty] à sua pança proeminente, que lhe dão um jeitão de vilão de estória em quadrinhos ― sabe que arrebatá-lo seria um triunfo para a posteridade.

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A cena movimentada, que testemunhei alguns anos atrás numa viagem à ilha, não é mais que uma tarde típica de Anderson, que, no meio do enorme Pacífico azul, é sempre uma visão bem-vinda no horizonte, para os pilotos que o atravessam.

Na atual crise, entre Estados Unidos e Coreia do Norte, em que, aos testes de mísseis desse último, se seguiram sanções e a ameaças ― com Trump ameaçando fazer chover “fogo e fúria” sobre Kim Jong-un, e este ameaçando atacar Guam ―, a base da Força Aérea de Anderson passou a ocupar um lugar crucial na projeção de poder norte-americano na Ásia. No entanto, tanto a base como a ilha de Guam são estrategicamente importantes, não só no que diz respeito à Ásia como também ao resto do mundo, por uma razão não muito visível: a ilha alberga o maior depósito de munições dos Estados Unidos no planeta, provendo bombas e mísseis para as forças norte-americanas em todos os lugares, da Coreia ao Afeganistão.

Se Kim Jong-un pode efetivamente ameaçar Guam, ele pode ameaçar a capacidade dos Estados Unidos de conduzir qualquer guerra na Península Coreana, a não ser uma muito curta ― sem falar na ameaça à capacidade dos Estados Unidos de conduzirem qualquer outra guerra de maior envergadura em qualquer outro lugar. Entre todas as ameaças, essa é surpreendentemente precisa, estratégica e digna de crédito.

Se parece evidente que os norte-coreanos leram os manuais de instruções norte-americanos é porque decerto eles os têm. Conforme informações jornalísticas da Coreia do Sul, que citam fontes governamentais, um cyberataque norte-coreano há cerca de um ano atrás roubou o plano base de guerra das forças dos Estados Unidos e da Coreia do Sul.

Por enquanto, ao menos, a crise parece ter arrefecido. O presidente da Coreia do Sul anunciou que faria todo o possível para evitar uma guerra, e a Coreia do Norte suspendeu o lançamento de um míssil com destino a Guam. No entanto, a Coreia do Norte parece ter atravessado o Rubicão: hoje, o isolado regime de Kim Jong-un se apresenta como uma potência nuclear não apenas capaz de lançar projéteis a longa distância ― seja sobre a Coreia do Sul, o Japão ou sobre supostos alvos nos Estados Unidos ―, mas capaz também de atingir um entroncamento estratégico como Guam, um pilar do poderio militar norte-americano global. Até agora, apenas a China havia sido reconhecida como capaz de alcançar esse remoto território ― e, de forma verossímil, apenas no ano passado, conforme a Comissão Norte-Americana para a China.

“A especificidade me incomoda”, disse na CBS a respeito da ameaça a Guam o ex-embaixador dos Estados Unidos na ONU, Bill Richardson, um dos poucos políticos veteranos com experiência sobre a Coreia do Norte. “O fato de que o próprio ministro das relações exteriores, Ri Yong-ho, com quem eu mesmo tratei, tenha sido tão enfático, me deixa preocupado com o tamanho da ênfase que foi dada”.

Há uma boa razão para se preocupar. Coberto pela densa selva de Guam, repleta daquelas infames cobras marrons da ilha, está o maior arsenal militar de bombas, mísseis e munições, que seria crucial para uma guerra na península. O 36º Esquadrão de Munições mantém 150 estruturas em forma de iglu, cobertas por mato, que albergam coisa de 9 milhões de itens que superam o valor de 1 bilhão de dólares, de acordo com a Força Aérea. Estimativas vindas a público dizem que 100 mil desses itens seriam bombas e mísseis.

Há também mais 549 contêineres contendo material explosivo. Eles são carregados nos aviões de combate que chegam e também em aviões cargueiros, até mesmo em tempo de paz, como também nos navios da Marinha americana e em naves militares estrangeiras. Dentro do arsenal encontra-se a único carregamento conhecido de mísseis de cruzeiro de lançamento pelo ar, mantido fora da porção continental dos Estados Unidos; mísseis que têm um alcance de 965 quilômetros e são transportados por [bombardeiros estratégicos -NT] B-52 [Stratofortress - NT].

Esse armamento poderia se revelar vital em um eventual conflito na Península Coreana. Os mísseis AGM-86D-Block II transportam ogivas de penetração. Uma vez lançadas, de acordo com a Federação Norte-Americana de Cientistas, o míssil só explodirá depois de penetrar em alvos subterrâneos. Estes alvos subterrâneos, aqui, parecem pensados para o caso de um conflito com a Coreia do Norte, tanto para atingir silos que armazenem ogivas nucleares quanto para atingir túneis desenhados para projetar unidades de operações especiais dentro do território da Coreia do Sul.

Desde os anos 70, os militares norte-americanos e sul-coreanos construíram seu plano de guerra em torno de uma estratégia largamente defensiva. O projeto, chamado OPPLAN 5027, advoga por uma retirada diante de um ataque convencional de uma grande tropa norte-coreana de 1,2 milhões de soldados, pela evacuação de Seul e, posteriormente, pelo reagrupamento e pelo avanço em direção ao norte, na direção da fronteira chinesa, num período de 60 dias. Os especialistas militares acreditam que as forças norte-americanas e sul-coreanas teriam apenas a metade do número de soldados que as forças norte-coreanas, mas que estão melhor equipadas em munição, aeronaves e tecnologia. Mesmo nesse cenário confuso, o plano foi pensado para conduzir ao que seria uma vitória consistente e definitiva.

No entanto, nos últimos anos o resultado esperado desse plano tem se tornado cada vez mais improvável. Com os programas de mísseis e armamento nuclear desenvolvidos pela Coreia do Norte, as simulações de guerra convencional na península, incluindo uma elaborada pela revista The Atlantic, sugerem que uma vitória por meio dessa estratégia levaria vários meses mais que o planejado, e poderia não ser nem consistente nem definitiva. O motivo: armas nucleares tornam as guerras mais demoradas. Contrariamente ao que se poderia supor a partir dos embates retóricos entre Estados Unidos e Coreia do Norte, a doutrina nuclear sugere que os países em confronto tendem a não usar armas nucleares de imediato, se é que chegam a usá-las. Isso porque armas nucleares (nukes) são, antes de mais nada, recursos de barganha, despendidos apenas quando seu valor político já se exauriu.

As armas nucleares estratégicas da Coreia do Norte servem para render mais tempo para Pyongyang em um conflito. O país poderia lutar numa guerra de 30 ou 60 dias, e depois prolongá-la, ameaçando com o uso de armas nucleares em troca de concessões. E poderia ainda ser subjugado em um sentido convencional, mas ainda se veria em condições de exigir, por exemplo, uma retirada conjunta dos EUA e da Coreia do Sul, ou mesmo o estabelecimento de fronteiras favoráveis, sob pena de vir a fazer uso de armas nucleares, e lançar qualquer vitória convencional inimiga por água abaixo.

Nuclear ou convencional, mais dias, semanas e meses de combate exigiriam mais bombas, mísseis e munições de Guam. Uma estimativa sugere uma partida inicial de 4.000 saídas de combate por dia em aviões. Supondo que cada saída consuma dois projéteis, teremos 8.000 deles por dia. Só com isso, bastariam três ou quatro dias para derrubar os estoques de Guam.

E se Guam fosse inacessível? A guerra aérea seria simplesmente obstruída.

“As realidades estratégicas de Kim [Jong-um - NT] ainda não são uma ameaça existencial para os [Estados Unidos], mas se forem deixadas sem controle, ele terá capacidade de fazer valer sua retórica”, disse o almirante Harry B. Harris, comandante do Comando do Pacífico, ao Comitê de Defesa do Senado em abril. “Nesse ponto, vamos acordar em um novo mundo”.

Na realidade, já o vivemos. Em reconhecimento à realidade emergente, em 2015 os Estados Unidos e a Coréia do Sul adotaram um plano de guerra adicional, o OPPLAN 5015, que projetou um rápido ataque preventivo contra a Coréia do Norte, destinado a destruir armas nucleares, mísseis e assassinar a liderança do país, incluindo presumivelmente Kim Jong-un. Houve apenas um imprevisto: os norte-coreanos parecem ter roubado o OPPLAN 5015 junto com o plano principal, o OPPLAN 5027.

Não está claro o que, exatamente, o governo norte-coreano poderia ter obtido de informações a respeito do OPPLAN 5027 que já não soubesse, mas uma coisa é clara: o planejamento explícito e declarado de assassinar a cúpula norte-coreana desencadearia nela seu único medo existencial: a perda do regime. E assim, prospectivamente, uma ameaça nuclear verossímil acabaria por se tornar inevitável, do mesmo modo como acabou colocando Guam ― e uma boa fatia do poder militar global dos EUA ― na linha de mira.



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