"Fronteiras e territórios nacionais não são o mais importante"

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Presidente Vladimir Putin, entrevista ao BILD 

11/1/2016, Socchi, Rússia (publicada em duas partes)

Nikolaus Blome (ed.-chefe), Kai Diekmann (publisher) e Daniel Biskup (fotos)
Tradução do Coletivo de Tradutores da Vila Vudu



BILD: Sr. presidente, há 25 anos, celebramos o fim da Guerra Fria. Agora tivemos um ano de mais crises e guerra do que jamais antes. O que deu tão horrivelmente errado nas relações entre o ocidente e a Rússia?


Presidente Putin: Eis a grande pergunta. Fizemos tudo errado.


BILD: Tudo?


Pres. Putin: Desde o início, nunca conseguimos superar a divisão da Europa. O Muro de Berlin caiu há 25 anos, mas muros invisíveis foram transferidos para o leste da Europa. Isso levou a desentendimentos mútuos e mútuas atribuições de culpa. Aí está a causa de todas as crises desde aquele momento.


BILD: O senhor quer dizer o quê? Quando esse desenvolvimento escalou?


Pres. Putin: Lá atrás, em 2007, muita gente me criticou pelo que disse na Conferência de Segurança de Munique. Mas o que eu disse lá? Simplesmente fiz lembrar que o ex-secretário-geral da OTAN Manfred Wörner havia prometido que a OTAN não se expandiria para o leste, depois de o Muro ser derrubado. Muitos políticos alemães também chamaram a atenção para o que estava acontecendo, por exemplo, Egon Bahr.


(Putin pede e o porta-voz lhe entrega uma pasta fina. Contém transcrições, dentre outras, de falas de Bahr em Moscou. "Nada disso foi jamais publicado" –, diz Putin.)


BILD: Que tipo de falas foram essas?


Pres. Putin: Ao longo do ano de 1990, o então chanceler Helmut Kohl e o ministro Hans-Dietrich Genscher, de Relações Exteriores, tiveram várias conversas com o presidente Gorbachev e outros funcionários soviéticos.


(Putin lê alto, em russo, a transcrição da conversa com Egon Bahr, o dedo indicador seguindo atentamente cada palavra escrita.)


Pres. Putin: Aqui, por exemplo, o que Egon Bahr disse dia 26/6/1990: "Se não tomarmos medidas claras para impedir a divisão da Europa, isso levará ao isolamento da Rússia." Bahr, homem inteligente, tinha sugestão muito concreta de como esse risco poderia ser evitado: os EUA, a União Soviética e os próprios estados interessados deviam redefinir a zona, na Europa Central, que não seria acessível às estruturas militares da OTAN. Bahr disse, literalmente, que se a Rússia aceitasse a expansão da OTAN, ele nunca mais poria os pés em Moscou (Putin ri discretamente).


BILD: E ele voltou a Moscou, ou não?


Pres. Putin: (ainda rindo) Honestamente, não sei.


BILD: Falando sério: os estados da Europa central queriam ser membros da OTAN, eles mesmos, por vontade própria. Esperavam que assim ganhariam segurança para eles mesmos.


Pres. Putin: Já ouvi isso mil vezes. Claro que cada estado tem o direito de organizar a própria segurança como melhor lhe pareça. Mas os estados que já estavam na OTAN, os estados membros, poderiam também pensar, ao mesmo tempo, nos próprios interesses deles. Se o fizessem, impediriam qualquer expansão da OTAN para o leste.


BILD: E a OTAN poderia não avançar? Não teria sobrevivido, porque... 


(Putin interrompe, repentinamente em alemão, sem esperar o intérprete): "Por que não?" 


BILD: Porque é parte das regras da OTAN e de sua autodefinição aceitar países livres como membros se quiserem e se cumprirem algumas condições.


Pres. Putin: (ainda em alemão) Quem redigiu essas regras? Políticos, certo? (O presidente volta a falar em russo.) 


Pres. Putin: Em lugar algum está escrito que a OTAN teria de aceitar certos países. O único requerimento para não aceitar sempre foi um desejo político. As pessoas não quiseram.


BILD: Por que, na sua opinião, aconteceu assim?


Pres. Putin: OTAN e EUA faziam questão de marcar vitória total sobre a União Soviética. Queriam sentar, só os EUA, no trono da Europa. E agora lá estão, sentados ali mesmo, e estamos falando de crises que, sem eles lá, não teríamos. Vê-se a mesma coisa, essa ânsia por triunfo total, também nos planos dos mísseis norte-americanos de defesa.


BILD: Mas o escudo de mísseis de defesa dos EUA – se algum dia vier a ser instalado – é defensivo, não é?


Pres. Putin: Em 2009, o presidente Obama dos EUA disse que a defesa com mísseis servia exclusivamente como proteção contra mísseis nucleares iranianos. Hoje, há tratado internacional com o Irã que impede que Teerã desenvolva projeto potencialmente nuclear militar. A Agência Internacional de Energia Atômica controla isso, as sanções contra o Irã são levantadas – mas os EUA continuam a trabalhar no tal sistema de mísseis de defesa. Ainda recentemente assinaram tratado com a Espanha, está sendo preparado deslocamento para a Romênia, o mesmo acontecerá na Polônia em 2018, e na Turquia está sendo instalada uma unidade de radar. Para quê? 


BILD: O senhor explicou, com detalhes, os erros que, do ponto de vista da Rússia, o ocidente cometeu. A Rússia não errou em coisa alguma?


Pres. Putin: Ah, sim, erramos muitos! Esperamos demais. Se tivéssemos apresentado nossos interesses mais claramente desde o início, o mundo teria continuado num melhor equilíbrio. Depois que a União Soviética deixou de existir tivemos muitos problemas nossos, pelos quais só nós somos responsáveis: o declínio econômico, o colapso do sistema do estado de bem-estar, o separatismo e, claro, os ataques terroristas que sacudiram nosso país. Quanto a isso, não precisamos ir longe para encontrar os culpados.


BILD: Em entrevista que o senhor deu ao BILD, há dez anos, o senhor disse que Alemanha e Rússia jamais haviam estado tão próximas como em 2005. O que restou desse relacionamento especial?


Pres. Putin: A simpatia mútua entre nossos povos é e continuará a ser a base de nossas relações.


BILD: E nada mudou? (Putin ri, com ar de zombaria.)


Pres. Putin: É. Mesmo com a ajuda de toda a propaganda anti-Rússia nos veículos de jornalismo de massa, a Alemanha não conseguiu deixar de nos parecer adorável... 


BILD: O senhor está falando do BILD?


Pres. Putin: Não estou falando pessoalmente de vocês. Mas não pode haver dúvidas de que a mídia-empresa alemã é pesadamente influenciada por gente do outro lado do Oceano Atlântico.


BILD: Para nós, é novidade. E então? Qual o estado atual do relacionamento Alemanha-Rússia?


Pres. Putin: Em 2005, tínhamos ótima situação. O orçamento comum chegou a 80 bilhões/ano. Milhares de empregos foram criados na Alemanha por investimentos russos. E grande número de empresas alemãs investiam na Rússia. Havia incontáveis contatos culturais e sociais. Hoje? O volume de comércio é metade do que foi, não passa de 40 bilhões de euros.


BILD: A Conferência de Segurança de Munique poderá ser boa oportunidade para melhorar as coisas?


Pres. Putin: Não irei a Munique.


BILD: O que o senhor pensa da teoria de que existiriam dois Vladimir Putins? Um, até 2007, amigo do ocidente, amigo íntimo do chanceler Schröder. E outro, depois, guerreiro da Guerra Fria.


Pres. Putin: Não mudei nunca. Sinto-me tão jovem como naquele momento e continuo muito amigo de Gerhard Schröder. Mas as coisas são diferentes nas relações internacionais. Nesse campo, não sou amigo, nem noivo nem noiva. Sou presidente de 146 milhões de russos e tenho de representar os interesses deles. Queremos resolver tudo sem conflitos e buscar acordos, respeitado tudo que a lei internacional determina.


BILD: Em 2000, o senhor disse que a lição mais importante da Guerra Fria foi que todos aprenderam que nunca mais deveria haver confronto de qualquer tipo dentro da Europa. Hoje, o confronto está aí, de volta. Quando reencontraremos o Putin daqueles dias, amigo do ocidente?


Pres. Putin: Repito que não mudei em nada. Veja a luta contra o terrorismo: depois dos ataques de 11 de setembro, fui o primeiro a me posicionar ao lado do presidente Bush dos EUA. Agora, depois dos ataques de Paris, fiz exatamente a mesma coisa e também me posicionei ao lado do presidente Hollande da França. O terrorismo ameaça todos.


BILD: A ameaça trazida pelo terrorismo islamista não criou nova área comum entre Rússia e o ocidente?


Pres. Putin: Sim, e temos de cooperar muito mais intimamente para lutar contra o terrorismo, que é desafio enorme. Mesmo que nem sempre todos concordem em todos os aspectos, ninguém deve tentar servir-se de uma ou outra discordância, como pretexto para nos declarar inimigos.


BILD: Já que o senhor falou de grande desafio: a Crimeia, para comparar, vale o preço de ferir assim tão gravemente o relacionamento entre Rússia e o ocidente?


Pres. Putin: O que você quer dizer com "Crimeia"?


BILD: O movimento unilateral das fronteiras, numa Europa que se baseia, particularmente, em respeitar fronteiras estatais.


Pres. Putin: Nesse caso, "Crimeia" significa, para mim, seres humanos.


BILD: Seres humanos?


Pres. Putin: O golpe dos nacionalistas na capital da Ucrânia, Kiev, em 2014, assustou terrivelmente 2,5 milhões de russos que vivem na Crimeia. O que fizemos? Não fomos à guerra, não atiramos contra ninguém, não houve sequer uma morte. Nossos soldados cuidaram com eficácia de impedir que tropas da Ucrânia aquarteladas na Crimeia criassem obstáculos intransponíveis à livre manifestação do desejo do povo que vive ali. Depois houve um referendo – cuja realização foi decidida pelo Parlamento da Crimeia, que sempre existira –, e a maioria dos cidadãos votou por aquele estado ser integrado à Rússia. Foi a vontade popular. Foi democrático.


BILD: Mas ninguém pode simplesmente modificar as fronteiras de estados europeus.


Pres. Putin: Para mim, fronteiras e territórios nacionais não são o mais importante. Importante é o destino das populações.


BILD: E a lei internacional?


Pres. Putin: Claro que é indispensável que a lei internacional seja respeitada, como foi respeitada, na Crimeia. Nos termos da Carta da ONU, todos os povos têm direito à autodeterminação. Veja o Kosovo: naquele momento os corpos da ONU decidiram que o Kosovo tinha de se tornar independente da Sérvia e que os interesses do governo central sérvio tinham de subordinar-se. É o que dizem todos os registros. Também os alemães.


BILD: Mas antes disso o governo central sérvio havia feito guerra contra os albaneses do Kosovo, e expulsara milhares deles. É uma diferença.


Pres. Putin: Fato é que houve longa guerra, na qual a Sérvia e Belgrado, sua capital, foram bombardeadas e atacadas com mísseis. Foi intervenção militar feita pelo ocidente e OTAN contra a Iugoslávia que já havia sido destroçada. E eu pergunto: se os kosovares têm direito à autodeterminação, por que o povo da Crimeia não teria? Na minha avaliação, todos têm de respeitar as leis internacionais, não mudá-las a seu favor cada vez que lhe pareça útil.


BILD: Se, como o senhor diz, não houve violação da lei internacional na Crimeia, como o senhor explica aos cidadãos russos as severas sanções econômicas aplicadas pelo ocidente e pela União Europeia?


Pres. Putin: A população russa tem visão absolutamente clara sobre toda a situação. Napoleão disse que justiça é a incarnação de Deus na Terra. Já disse e repito: a reunificação de Crimeia e Rússia foi medida justa. As sanções ocidentais não visam a ajudar a Ucrânia, só existem como represália geopolítica contra o ato justo, da Rússia. É bobagem. Estão causando prejuízos para os dois lados.


BILD: As sanções estão sendo muito difíceis para a Rússia?


Pres. Putin: No que tenham a ver com nossas possibilidades nos mercados financeiros internacionais, as sanções estão causando grave dano à Rússia. Mas o maior dano, hoje, é causado pelo declínio no preço da energia. Estamos sofrendo graves perdas nas nossas receitas de exportação de petróleo e gás, que só podemos compensar parcialmente com outros itens. Mas a coisa toda tem também um lado positivo: se você acumula muitos petrodólares – como antes era o caso da Rússia –, e é fácil comprar noutros países tudo de que você precisa, o desenvolvimento local, nacional, tende a ficar mais lento.


BILD: O que se diz é que a economia russa sofreu gravemente.


Pres. Putin: Atualmente já estamos estabilizando nossa economia. Ano passado, o PIB caiu 3,7%. A inflação está perto de 12,7%. Mas a balança comercial ainda é positiva. Pela primeira vez em muitos anos, estamos exportando significativamente mais bens com alto valor agregado, e temos mais de 300 bilhões de reservas em ouro. E já estão sendo executados vários programas para modernizar a economia.


BILD: Em 2015, o senhor falou longamente sobre a Crimeia e a crise no leste da Ucrânia com a chanceler Angela Merkel. Como está hoje essa relação?


Pres. Putin: Temos relacionamento de trabalho. Nos encontramos sete vezes, ano passado; e nos falamos pelo telefone pelo menos 20 vezes. 2016 é o ano do intercâmbio de jovens entre Alemanha e Rússia. As relações avançam. 


BILD: O senhor confia em Angela Merkel?


Pres. Putin: Confio. É pessoa muito aberta. Está, claro, submetida a pressões e limitações. Mas está fazendo esforço honesto para superar a crise, também no sudeste da Ucrânia. Seja como for, o que a União Europeia faz, com aquelas sanções, não passa de teatro do absurdo.


BILD: Teatro do absurdo? No leste da Ucrânia nem tudo está como deve estar antes de as sanções serem levantadas.


Pres. Putin: Tudo que falta para implementar o Acordo de Minsk é – sem exceção –, atribuição do governo central da Ucrânia, em Kiev. Você não pode exigir de Moscou algo que, de fato, é tarefa e dever do governo de Kiev. O aspecto mais importante é a reforma constitucional, ponto 11 do Acordo de Minsk (Putin pede outra pequena pasta e lê o item 11 do acordo, em russo, em voz alta; o dedo indicador acompanha cada palavra escrita.)


A reforma constitucional deveria garantir autonomia ao leste da Ucrânia, e deveria ter sido adotada no final de 2015. Não fizeram reforma alguma, e o ano acabou. Não é culpa da Rússia.


BILD: Mas a reforma constitucional não estava prevista para começar depois que os separatistas apoiados pela Rússia e as tropas do governo central no leste da Ucrânia parassem de se matar uns os outros?


Pres. Putin: Não. Não é o que está escrito aqui. Primeiro, a Constituição tem de ser reformada. Só depois disso é possível construir confiança. Só depois, afinal, se pode ter segurança na fronteira. Leia aí. (Putin passa os papeis para o outro lado da mesa). É a tradução ao inglês. Pode levar com você. ("Obrigado", respondem os jornalistas. Putin, responde em alemão: "Não há de quê").


BILD: O senhor acha que Angela Merkel também não leu nem compreendeu adequadamente o Acordo de Minsk? Ela acaba de votar a favor de estender as sanções contra a Rússia.


Pres. Putin: A chanceler e os parceiros europeus bem fariam se dedicassem mais atenção aos problemas no leste da Ucrânia. Talvez no momento estejam com muitos problemas domésticos. Pelo menos, afinal, Alemanha e França criticaram recentemente que o governo central em Kiev tenha limitado alguns itens das leis de autonomia a apenas três anos. Estavam previstos para serem permanentes.


BILD: Já que conversam tanto, tantos contatos, o que o senhor mais admira na chanceler?


Pres. Putin: Não disse que a admiro. Reconheço que é pessoa aberta e profissional.


BILD: Quando a chanceler o visitou em Socchi em 2007, o senhor levou seu cachorro Koni ao encontro. Não sabia que a chanceler tem algum incômodo com cachorros e que poderia ser desagradável para ela?


Pres. Putin: Não sabia. Só quis ser gentil, supus que ela se alegraria. Quando me disseram que ela não gosta de cachorros, pedi desculpas, claro.


Fim da primeira parte.

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