Casa Branca invadida por belicistas anti-iranianos



Michael Flynn acabará levando Trump para um caminho perigoso, inspirado por teorias periféricas sobre a civilização islâmica.


por
Philip Giraldi, tradução de btpsilveira

Fevereiro de 2017 "Information Clearing House" - "American Conservative " – Por conta de alegadas ações suspeitas do Irã, os EUA estão acrescentando novas sanções contra o país. Ocorre que quase todas essas alegações ou são mentiras deslavadas ou verdades quase mentiras. Demonizar o Irã tem sido uma regra familiar seguida pelos Estados Unidos desde 1979, em um fenômeno que inclui assertivas fabricadas de que os iranianos teriam matado soldados americanos depois da intervenção armada dos EUA no Afeganistão e Iraque.


Desta vez, a administração está focada em um teste de mísseis iranianos de médio alcance sem capacidade nuclear, perfeitamente legal, e a um  ataque que teria acontecido contra o que foi inicialmente descrito como sendo um navio de guerra (norte)americano, ataque este desferido por guerreiros Houthis iemenitas supostamente apoiados pelo Irã. Posteriormente, descobriu-se que o navio era uma fragata saudita.

O Conselheiro de Trump para a Segurança Nacional, Michael T. Flynn colocou o Irã “oficialmente de sobreaviso” ao declarar que “A administração Trump não vai mais tolerar as provocações iranianas que ameacem nossos interesses. Os dias em que se fechavam os olhos para a posição hostil e beligerante do Irã contra os Estados Unidos e a comunidade mundial acabaram”.

Tudo isso ignora o fato simples de que o Irã na realidade não tem como ameaçar os Estados Unidos ou qualquer de nossos genuínos interesses nacionais. O alerta e as consequentes ações que lhe seguirão também contradizem o tema de campanha de Trump de evitar o surgimento de uma nova guerra no Oriente Médio, cuja percepção parece ter escapado de Flynn. O crescimento da tensão e a falta de diálogos diplomáticos significam que a guerra pode ser disparada por um incidente de “falsa bandeira”, relatos de inteligência intencionalmente equivocados ou até por um encontro naval incidental.

Acaso você esteja pensando que tudo isso não passa de uma reprise das informações mentirosas e negociações intencionalmente improdutivas que nos levaram para a catastrófica guerra contra o Iraque, trata-se disso mesmo. A que Flynn quer se referir com “ações beligerantes contra os Estados Unidos” ao falar assim de forma tão genérica não fica completamente claro, mas essa falta de precisão pode ter sido intencional, para permitir uma demonização instantânea de seja lá o que for que Teerã esteja tentando para conter a hostilidade a partir de Washington.

Existe uma espécie de honroso pedigree no ódio ao Irã. Devo confessar que venho de uma geração do governo federal, como também Flynn e outros, na qual dizer alguma calúnia contra o Irã estava inscrito em nossos DNAs, era bem recebida por todo mundo e mais um. Pessoalmente, eu nutri uma irritação particular contra os Mulás, desde que um agente iraniano tentou me matar na Turquia nos anos 80. Porém a maior parte dessa animosidade era genérica, algumas vezes objeto de anedotário em reuniões nos quartéis generais da CIA, entre o pessoal. Lembro-me de um colega que trabalhava encobertamente em um escritório consular, que gostava de brincar sobre a quantidade de vistos que negava aos iranianos, desde que todos tinham que passar pela sua mesa para aprovação. Evidentemente, nos sentíamos justificados pela iranofobia, devido à crise dos reféns da embaixada em 1979/80, cuja memória estava bem fresca em nossas mentes.

Porém meu rancor contra o Irã foi de curta duração. Tenho amigos iranianos e hoje tenho a visão de que o Irã sofreu muito mais que causou sofrimento em seus relacionamentos com os Estados Unidos. Com a assinatura do Plano Abrangente de Ação Conjunta (JCPOA, sigla em inglês – NT) em julho de 2015, comecei mesmo a acreditar que as duas nações poderiam ser capazes de reassumir algo como relações diplomáticas normais, o que no fim beneficiaria ambas as partes. Infortunadamente, essas esperanças parecem ter sido descartadas pela recente onde de histeria contra o Irã, que parece ter sido criada justamente para eclipsar o pânico contra a Rússia que estava em curso na imprensa e nas conversas fiadas em geral durante os seis últimos meses.

Eu deveria ter previsto o que estava para vir. Em dezembro de 2015, presenciei uma conferência em Moscou quando o General Flynn expôs seu conceito para a estratégia geo-econômica-política para o século 21. Pelo menos acho que era sobre isso que ele falava, embora possa entender a frustração da entrevistadora Sophie Shevdernadze, enquanto ela se esforçava tentando fazer que ele mostrasse o que queria dizer durante uma apresentação totalmente incoerente.

Naquela época eu sabia muito pouco sobre Flynn e sua visão de mundo, mas fiquei surpreso quando ele repentinamente levou o assunto diretamente para os iranianos afirmando claramente que eles eram responsáveis por “patrocinar quatro guerras por procuração no Oriente Médio”. Presumiu-se que ele estava se referindo ao Iraque, Síria, Afeganistão e Iêmen. Ora, a audiência, que incluía certo número de jornalistas internacionais que eram verdadeiros especialistas em Política Externa, começaram a murmurar uns com os outros.  Eu estava nos fundos da sala e fui testemunha do filho de Flynn, Michael G. Flynn, que, encarando as expressões de descrença dos jornalistas, agitava os braços e gritava: “Certo, certo! Chequem as informações!”

Alguns minutos depois, Flynn sênior retornou ao tema, mencionando o quão terrível era “o acordo nuclear com o Irã”. Neste momento, me acostumei a ouvir coisas terríveis sobre o Irã, mas isso normalmente vem de ativistas partidários israelenses, que insistem em descrever falsamente o Irã como uma ameaça à sobrevivência do mundo. Mas é do interesse deles fazer isso, e muitos políticos (norte)americanos de cabeça oca e jornalistas cheios de conversa fiada assumiram o tema a tal ponto que neste instante, um ataque dos Estados Unidos contra o Irã seria aprovado por grande maioria no Congresso e aplaudido em pé pela imprensa.

Ocorre que eu acreditava que Flynn não estava vinculado especificamente a esse grupo, que consiste principalmente de neoconservadores, e que seu desprezo pelo Irã era sincero, com raízes aparentemente em sua experiência como presidente da DIA (Defense Intelligence Agency – NT). Porém eu estava errado e deveria ter prestado mais atenção às pessoas das quais Flynn estava falando.

A visão de mundo de Flynn e suas fontes

Inimigo do Irã de longa data, Michael Ledeen acreditava que a primeira prioridade em 2003 deveria ser a invasão do Irã, e não do Iraque. Ele acreditava que “todas as pistas levam a Teerã” e que o Irã manipulava ambos os lados do conflito xiita/sunita, o que acabou levando o crítico Peter Beinart a constatar que “seu esforço para fazer com que todos acreditem que todos os ataques contra (norte)americanos têm as digitais de Teerã o coloca em um território para lá de esquisito”.

Na ocasião em que discursava em Moscou, Flynn já estava colaborando com Ledeen em um livro denominado “The Field of Fight: How we Can Win the Global War Against Radical Islam and Its Allies” – (No Domínio da Luta: como venceremos uma guerra global contra o Islã Radical e seus aliados - NT), que foi lançado em julho de 2016. O livro traz duas premissas básicas: em primeiro lugar, todo o “mundo civilizado” estaria engajado em uma luta de vida ou morte contra uma forma pervertida do Islã, que produziu o fenômeno ao qual se referem como “Terrorismo Radical Islâmico”, uma frase que poderia estar gravada na heráldica da administração Trump, em grande parte graças a Flynn. Este insiste na padronização abarcando o mundo islâmico, mesmo porque acredita que o conflito faz parte inseparável da religião islâmica por natureza. De fato, ele prefere chamar o Islã não de religião e sim de ideologia e sempre o descreve como uma ideologia política que provocou a metástase de “câncer maligno”. Certa vez colocou nas redes sociais que “temer os muçulmanos é RACIONAL”, ligando a frase a uma afirmação FALSA que afirma que o Islã quer que 80% da humanidade ou seja escravizada ou exterminada.

Em segundo lugar, o livro de Ledeen vê o Irã como a fonte e baluarte da desordem massiva que prevalece no Oriente Médio, com tentáculos que abarcariam toda a região e até além dela. Em si mesmo, o Irã seria um regime islâmico que usa o terror como uma arma, um Estado patrocinador do terrorismo, de acordo com o Departamento de Estado dos EUA, e também um aliado de movimentos como o Estado Islâmico e das várias afiliações da Al Qaeda, às quais apenas finge estar combatendo (incrível como esta descrição é quase perfeita quando a aplicamos aos Estados Unidos! – NT). Além disso, Flynn e Ledeen também fazem a assertiva de que o Irã pretende desenvolver uma arma nuclear e que teria um programa secreto para isso apesar do acordo assinado em 2015. Usaria tal arma para ameaçar Israel e outros interesses dos Estados Unidos no Oriente Médio e outras regiões, e estaria simultaneamente desenvolvendo mísseis balísticos que poderiam ser usados para levar as tais armas nucleares até o alvo.

A mente conspiratória de Flynn vai além de Ledeen, até a época em que estava na DIA, onde era bem conhecido entre seus subordinados, que se referiam às “coisas de Flynn”, coisas que ele dizia e que eram comprovadamente mentiras. Como exemplo, ele insistia que três quartos de todos os novos telefones celulares estavam sendo comprados por africanos e teimava que o Irã tinha matado mais (norte)americanos que a Al Qaeda. Quem se atreveria a discordar? Quando ele assumiu a DIA, disse aos seus principais assessores que tudo o que eles tinham que saber era que ele, Flynn, estava sempre certo. Seus subordinados só acertariam quando pensassem da mesma forma que ele.

Como diretor da DIA, Flynn considerava o ataque em Bengasi em setembro de 2012 como mais um incidente na Guerra global contra o Islã. Sua reação inicial foi tentar “provar” o envolvimento dos iranianos, tendo pressionado os analistas para endossar suas assertivas, tendo chegado a admoestá-los quando eles declararam não poder apoiar suas conclusões. Ele disse que os analistas estavam criando um evento de “black swan” (ocorre quando um acontecimento é analisado incorretamente e posteriormente corrigido com base em perspectivas e fatos posteriormente revelados. Decorre do antigo ditado de que não existem cisnes negros na natureza. Quando os fatos mostraram o inverso, o ditado foi corrigido. – NT) que precisava de  análises mais criativas para ser corretamente interpretado.

Mais tarde, em um testemunho na Câmara dos Deputados em junho de 2015, Flynn afirmou que

O Irã representa um perigo claro e sempre presente para a região e ocasionalmente para o mundo; O desejo declarado do Irã de destruir Israel é bem real. O Irã nunca contribuiu sequer uma vez para o bem da segurança da região ou de sua população. Em vez disso, e durante décadas, eles têm contribuído para aumentar a insegurança e a instabilidade da região, especialmente do Levante, que cerca Israel ... é evidente que o acordo nuclear não é uma solução permanente mas apenas um substitutivo.

Eventualmente, Flynn foi demitido da DIA, parte por suas visões linha dura, parte pela sua constante demonização do Irã e do Islã. É facílimo sugerir que Flynn tem uma compreensão precária do que está acontecendo de verdade no Oriente Médio. Considere-se, por exemplo, suas afirmações de que o Irã (xiita) está ligado a grupos como a Al Qaeda (sunita), que consideram os xiitas como hereges e estão dispostos a exterminá-los baseados apenas nisso. Mas na realidade a situação nesta fase é muito mais perigosa que aquelas detonadas pelos usuais grupos de “think tank” em Washington: Flynn e Ledeen construíram toda uma narrativa na qual o mundo está em guerra com um grande mal e que o Irã é um dos principais atores do lado do inimigo. Trata-se de um ponto de vista infelizmente compartilhado pelos novos secretários da Defesa e do Estado e corroborado por grande parte do Congresso. Claro quem tudo isso acabou por desencadear uma nova onda de sensibilidade quanto à segurança nacional dos EUA que aparentemente está dirigindo as respostas da administração Trump quanto ao comportamento iraniano.

O perigo da escalação

Certamente, o Irã demonstra um comportamento assertivo regionalmente. Mas as suas manobras são sempre defensivas por natureza; é cercado por um mar de inimigos, a maioria deles mais bem armados que o próprio Irã. O acordo nuclear com o Irã afastou por enquanto o possível desenvolvimento de uma arma nuclear e é do interesse de todos manter esse acordo. Não dá para acreditar que se trata apenas de uma tática para adquirir alguma arma nuclear em dado ponto do caminho, como Flynn e Ledeen querem nos fazer acreditar.

O Irã pode se revelar um osso duro de roer se Flynn conseguir o que quer e se a Casa Branca de Trump empregar contra o país sua força militar. Tem quase o mesmo tamanho que o Alaska e três vezes a população do Iraque. O povo iraniano tem uma identidade nacional muito forte. Eles lutarão duramente, e usando seu sofisticado sistema de defesa russo e seus mísseis chineses podem causar grandes perdas no poder aéreo e naval dos EUA no Golfo Pérsico e na região. Podem também desencadear um limitado porém letal recurso terrorista. Não será como comer uma torta de maçã, e mesmo no caso da obtenção de uma vitória militar de algum tipo, o mundo terá que lidar com mais um vácuo de poder no coração da Ásia.

Acredito que Flynn é uma pessoa perigosa e possivelmente desequilibrada mentalmente com relação a certos assuntos. Ele pensa que os Estados Unidos têm o direito de impor aos países do Oriente Médio a visão (norte)americana do que é aceitável ou não e está disposto a exercer medidas muito duras para compelir esses países no caminho do que acredita ser um “bom comportamento”. O Irã já foi apontado como um “Estado Problemático”, e por consequência não tem a permissão de agir na busca de seus próprios interesses. Flynn justifica sua hostilidade através de acusações de que o Irã é financiador do terrorismo e da instabilidade mundial, o que não passa de uma mentira abominável para justificar seu belicismo. Descartada a diplomacia para resolver as diferenças, a única interação atual de Washington com Teerã são as ameaças de sanções econômicas baseadas no uso de força militar. Como o Irã responde na mesma moeda, tudo vai se tornando um ciclo de escalação belicosa que não será detido facilmente.

Uma política mais equilibrada de parte a parte poderia permitir ao Irã se desenvolver normalmente sem o fluxo constante de provocações que só favorecem os políticos de linha dura daquele país. O povo jovem do Irã, que é a maioria da população, é muito pró ocidente e até pró EUA em seus sentimentos e afinidades culturais. A população iraniana é estreitamente ligada a uma grande diáspora, sendo que apenas nos Estados Unidos vivem 1.5 milhões de iranianos. Ameaças de ações militares só fazem fortalecer o controle do governo em Teerã, produzindo respostas amargas e empilhando ameaça em cima de ameaça, o que não leva ninguém a lugar nenhum. Espera-se que os adultos no gabinete da Casa Branca venham a certo ponto chamar Flynn às falas, mandando que baixe a bola e preste atenção na realidade dos fatos.


Philip Giraldi, antigo funcionário da CIA, é diretor executivo do Council for the National Interest, organização não partidária e sem fins lucrativos para análise da situação no Oriente Médio, sob a ótica dos interesses dos EUA.

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