por Federico Pieraccini,
tradução de btpsilveira
Digamos
que está surgindo um cenário mais favorável, pois já se pode afirmar que o
mundo não terá que encarar nuvens em forma de cogumelos. Com a derrota de
Hillary Clinton, evitamos um engajamento nuclear que certamente surgiria de um
conflito direto com a Rússia na Síria e uma escalação da luta na Ucrânia. Infelizmente
as boas notícias acabam aqui. Nada de bom pode ser previsto após o caos que
surgiu na sequência da eleição de Donald Trump como presidente dos Estados
Unidos. Há dez anos persiste uma crise econômica que não parece ter solução à
vista. Ignorada e subestimada pela elite, essa crise se tornou o motor da
insatisfação com os políticos que disparou o voto de protesto nos Estados
Unidos e na Europa. O resultado positivo disso, uma aparente ruptura com o
passado, degenerou em um período de caos e desordem aparentes, causado
principalmente pelos conflitos entre os líderes das classes dirigentes.
Claramente,
Trump nunca foi o candidato preferido pelas agências de inteligência (CIA e NSA
especialmente), a imprensa e o consenso político em Washington. É o óbvio. Por
outro lado, dizer que Trump está bem posicionado com alguns generais,
banqueiros e empresas, é mergulhar em uma simplificação exagerada que pode
alimentar a dificuldade de entender o caos que cerca a nova administração.
As
tentativas de sabotar o novo governo são evidentes e surgem tanto nas hostes
dos partidos Republicano quanto no Democrata, que se opõem abertamente a Trump,
com a ajuda das agências de inteligência e da mídia. Esse triunvirato composto
pelas agências de inteligência, a mídia e o establishment político já infligiu
danos de monta: a sabotagem no Iêmen; a demissão de Flynn como Conselheiro para
a Segurança Nacional; a relação de antagonismo entre a imprensa e a
administração e a interminável série de controvérsia quanto ao papel da OTAN e
dos tratados comerciais (como o TPP). Essa tríade, dirigida por líderes dos
Partidos Democrata e Republicano, parece estar funcionando a toda velocidade
para alcançar um resultado inconcebível depois de apenas um mês, que seja, o
impeachment de Trump e a condução de Pence ao poder, para a continuidade das
políticas de Bush e Obama, mais alinhadas com o projeto (norte)americano de
hegemonia global.
Embora
não sendo um tolo, ao tentar reparar as sabotagens Trump toma decisões
equivocadas que em vez de melhorar, pioram a situação. A decisão de demitir
Flynn pareceu errada e exagerada, distanciando o presidente de seu desejo de
melhores relações internacionais, uma de suas mais importantes promessas.
Tentar
conjecturar sobre as decisões internas e mecanismos empregados pela administração
Trump requer uma confiança exagerada na autenticidade das informações
disponíveis. Com certeza, Flynn e Bannon parecem ser o núcleo dos elementos
anti establishment de Washington e os maiores advogados de uma reaproximação
com Moscou. Por esta linha de raciocínio especulativo, Pence, McMaster
(indicado como sucessor de Flynn), Mattis e Priebus parecem representar a
facção neoconservadora, o coração do establishment bipartidário em Washington; o
fato de que foram indicados diretamente por Trump nos leva a duas conclusões:
ou uma confiança excessiva de Trump quanto a sua capacidade de lidar com a
besta ou uma imposição de fora que pressupõe um fracasso do presidente em
controlar sua própria administração e tomar as decisões mais importantes.
Figuras
como Rex Tillerson e Mike Pompeo espalham ainda mais confusão. Enquanto parecem
confirmar a política de “primeiro os Estados Unidos” e não demonstrar estar
alinhados aos neoconservadores, eles com certeza são mais aceitáveis para o
establishment neocon que gente como Bannon e Flynn.
Para quem
escreve análises, o problema primordial é encontrar uma tendência racional e
lógica permeando as decisões presidenciais, a qual possibilite entender e
antecipar o caminho da nova administração no futuro. Até agora, passado apenas
um mês, temos testemunhado alguns eventos que indicam que o pântano será
drenado, e outros que indicam o contrário: continuação total da era Bush/Obama.
Toda e
qualquer hipótese necessita informação e avaliação que seja confirmada pelos
acontecimentos. Em meu artigo anterior, enfatizei a necessidade de uma
distinção clara que precisa ser feita entre palavras, ações (ou omissões) da
nova administração. Na Síria e na Ucrânia, as facções tradicionalmente apoiadas
pelos Neocons (que são inimigos figadais de Trump) estão passando tempos
difíceis. Poroshenko está cada vez mais nervoso e provocativo (Putin, que
corretamente não confia em ninguém em Washington, iniciou o processo de
reconhecimento pela Federação Russa dos passaportes das entidades do Donbass),
tentando envolver a Rússia no conflito ucraniano. Na Síria a situação melhora a
cada dia graças à liberação da cidade de Alepo e as brigas entre os oponentes
de Assad, que resultaram numa série de embates entre facções Takfiri
concentradas em Idlib.
Nos dois
cenários, políticos europeus e dos EUA, as agências de inteligência (lideradas
pela CIA) e a imprensa tem juntado esforços para atacar a nova administração,
que não seria amigável o suficiente com Kiev e talvez esteja se opondo a armar
e treinar “rebeldes moderados” na Síria. O recente discurso de Pence em Mônaco
serviu para assegurar (ou reassegurar) aos aliados europeus o papel da OTAN e
dos Estados Unidos no mundo. Mesmo assim algumas mudanças parecem estar
acontecendo na Síria, onde a CIA aparentemente cessou de financiar os programas
dos terroristas. Um dos emissários do estado profundo com ligações com o
extremismo islâmico, John McCain, fez uma viagem para a Síria e Turquia, para
mediar e renovar os laços com os Wahhabis mais extremistas na Síria. O objetivo
de McCain era sabotar as tentativas de Trump de acabar com o apoio aos
“rebeldes moderados” na Síria (também conhecidos como Al Qaeda). Os esforços de
McCain visam uma reaproximação com Erdogan, para levá-lo em direção à causa do
estado profundo e mais uma vez, para sabotar os esforços diplomáticos entre a
Turquia, Irã e Rússia na Síria. Esforço semelhante foi realizado por McCain e
Graham há cerca de dois meses na Ucrânia, instigando as elites políticas e
militares da Ucrânia para aprofundar as operações militares no Donbass. São
duas indicações claríssimas da intenção de criar problemas para a nova
administração.
Em
resumo, é o caos brotando no campo da nova administração.
Trump
parece viver em um perigoso dilema: estaria ele no controle dos eventos ou à
mercê de decisões tomadas em níveis mais poderosos, contra seus desejos
expressos? A reaproximação pretendida com Moscou parece estar ainda em curso
quando se observa a Síria e a Ucrânia. A suavização do tom contra o Irã, que
coincide com a partida de Flynn oferece alguma esperança. A contenção e a
retomada de diálogo com Pequim também parece sugerir que uma escalação no Mar
do Sul da China e da China Oriental poderá ser evitada. Semelhante ao que
aconteceu com a retirada do TPP.
A
impressão geral que parece vir dos primeiros trinta dias é o de uma
administração em caos. A partida de Flynn é um duro golpe contra a
reaproximação de Moscou. Tendo substituído Flynn por McMaster, um discípulo de
Petraeus que é um forte apoiador da estratégia 4+1 (Rússia, Irã, China, Coreia
do Norte + Estado Islâmico) como a principal prioridade na política externa e
parece afastar as esperanças de uma administração livre dos belicistas. A estratégia
4+1 é o coração da procura pela hegemonia global tão cara aos promotores do
excepcionalismo (norte)americano. A possível entrada e Bolton no governo com
papel ainda indefinido, a indicação de Pence como vice presidente, e a atuação
de Priebus e Mattis sugere o retorno do neoconservadores ao banco do motorista.
Mas será que isso é verdade?
As impressões
que podemos acumular vêm das experiências anteriores dos indicados por Trump,
publicações da imprensa, versões da CIA e possíveis vazamentos daqueles que
estão a trair a administração. A percepção que podemos colher como observadores
do lado de fora não pode ser precisa, resultando provavelmente da constante
manipulação através da mídia. Que credibilidade podem ter os jornais, políticos
e fontes anônimas do setor de inteligência que pelas duas últimas décadas
moldaram cinicamente a percepção do público acerca de grandes guerras e
conflitos através do globo?
A questão
é a seguinte: como se ver livre desses condicionamentos todos para desenvolver
uma ideia acurada sobre Trump? Trump seria um produto paralelo do estado
profundo? Seria uma alternativa aceitável para algumas das facções do estado
profundo?
Seja qual
for a resposta nós estamos vendo um conflito sem precedentes entre diferentes
versões do poder estabelecido. Com certeza, temos facções alinhadas ao
pensamento dos neoconservadores; facções ligadas ao novo Secretário de Estado,
até pouco tempo atrás o poderoso CEO da Exxon Mobil; facções com intenções
nacionalistas que pressionam por uma política isolacionista que obedeceria em
princípio “os Estados Unidos Primeiro”. Se alguma certeza existe, é precisamente
que não temos qualquer maneira lógica de adivinhar as intenções de Trump. Há
incerteza demais quanto às intenções declaradas por Trump, com a influência dos
belicistas dentro de sua presidência, e com a capacidade de seus colaboradores
mais leais (com Bannon despontando) para evitar uma erosão de dentro para fora.
Na raiz,
temos uma grande falta de informação, que resulta da excessiva importância dada
a cada palavra expressa por Trump, que às vezes entram em conflito umas com as
outras, e ainda em conflito com outros setores da administração interna.
Deveríamos prestar atenção especial às ações (e omissões) da nova
administração, e ligar os pontos logicamente para alinhavar eventos importantes
a surgir. Trump já teve duas conversações telefônicas com Putin, uma delas
especialmente positiva de acordo com o Secretário de Imprensa da Casa Branca,
Sean Spicer. Houve igualmente bons relacionamentos de parte a parte entre
Pequim e Washington, entre elas uma carta particularmente popular para a
liderança chinesa; o Irã parece ter desaparecido do radar com a partida de
Flynn. Por outro lado, as sanções adicionais contra o Irã estão aí para nos
lembrar como a administração republicana deverá garantir uma tendência hostil a
Teerã. Neste sentido, não foi nenhuma surpresa que op tapete vermelho tenha
sido estendido para Netanyahu em sua visita a Washington.
Outro sinal
importante foi com certeza a ausência de Trump na conferência em Mônaco. O
atual presidente pretende mesmo continuar a dar prioridade aos assuntos domésticos
em detrimento da política internacional.
Por
enquanto temos que nos contentar com só um pouquinho de informação. Na Síria a
situação está melhorando graças à inação de Washington; na Ucrânia Poroshenko
não está encontrando na nova administração o tipo de apoio que esperava receber
caso Hillary fosse eleita (este desapontamento é partilhado pelos Banderistas
em Kiev e pelos Takfiris Wahhabi na Síria). Mas as boas notícias parecem parar
por aqui mesmo e com uma série de assuntos explosivos já no ponto de partida.
As tropas ocidentais continuam na fronteira da Rússia (a retirada dessas tropas
seria uma boa maneira de demonstrar a Moscou que Trump tem realmente intenção
de dialogar, mas seria uma concessão que enfureceria muitos membros da União
Europeia). Os sauditas continuam a receber apoio importante para sua campanha
no Iêmen. As ameaças contra a Coreia do Norte continuam inalteradas e para
terminar, as ordens executivas de Trump tem provocado reação forte no campo
doméstico.
São
políticas decepcionantes estas adotadas nos primeiro trinta dias da administração
e parecem desmentir a vontade de romper com o passado. Conforme passam os dias
e mais pessoas são indicadas para a administração enquanto outras saem, o
quadro que parece estar emergindo é de uma batalha penosa contra o estado
profundo, levando Trump a fazer concessões significativas. McMaster,
Mattis, Priebus e Bolton são reflexo disso. Ou não. Bolton terá papel muito mais marginal do
que imaginava (Secretaria de Estado), e McMaster pode ser o melhor caminho para
reconstruir a força do exército e fortalecer a dissuasão sem ter que apelar
para a força bruta, que permaneceria como uma última escolha para o presidente.
O risco
maior para Trump continua o de ser esmagado pela máquina de guerra que dirige a
política dos Estados Unidos há mais de 70 anos. Ele teria que desistir sem sequer
ter a oportunidade de mudar o curso dos acontecimentos, caso fosse esta
realmente a sua intenção inicial. O problema com esta nova administração é
tentar entender o que é imposição e o que é o resultado de pensamento
estratégico. Não se pode excluir a possibilidade de que a estratégia de Trump
seja manter a base com respeito às promessas de eleição através da criação de
uma cortina de fumaça na qual ele seria retratado como um lutador contra o
estado profundo que ocasionalmente tem que ceder alguma coisa para manter uma
coexistência pacífica. Seria imprudente não levar isso em conta por uma razão
mais profunda: Trump tem que demonstrar a seus eleitores que ele está
completamente isolado do establishment e a melhor maneira de mostrar isso é
mostrar que é alvo da imprensa corporativista. É uma tática realmente boa, mas
não durante todo o tempo. Conseguirá ele continuar a agir (e mostrar-se) como
vítima erguendo um escudo efetivo contra o criticismo sobre promessas
eleitorais não cumpridas, especialmente na política externa? Seus
eleitores continuarão acreditando nisso? Veremos.
No caso
das ações futuras da nova administração seguirem uma direção similar àquelas de
Bush e Obama, Trump não poderá agir como vítima, dado que a escolha das pessoas
mais próxima na administração foi dele mesmo.
Mais uma
vez isso nos leva à falta de informação disponível na forma de visões
objetivas, agravadas pelos vacilos da nova administração.
Nesta
situação toda, há pelo menos um aspecto positivo: Teerã, Pequim e Moscou agora
têm ainda maior incentivo para fortalecer suas alianças e não criar questiúnculas
que possam prejudicar a amizade; e ainda para criar projetos que reforcem a integração
eurasiana. A eleição de Trump criou grandes expectativas de que ele seguisse o
objetivo estratégico de arruinar a aliança entre China e Rússia. Mas felizmente
Trump não fomentou muitas esperanças de um diálogo com Moscou a esse respeito.
A coisa mais importante é que uma confrontação em escalação que poderia levar a
uma guerra nuclear foi evitada.
Paradoxalmente,
podemos ter uma situação extremamente vantajosa para o continente eurasiano,
permitindo integração futura enquanto Washington continua com suas afirmações
contraditórias (especialmente em relação ao Irã e à China em termos de sanções
comerciais e possível guerra) assegurando que não se perderá um tempo valioso
em conversações excessivas e inúteis com o novo presidente (norte)americano. Se
Trump mantiver suas promessas cruciais, que seja evitar um conflito de dar
prioridade aos assuntos e interesses domésticos (segurança nacional e
econômica), então o mundo multipolar no qual viveremos certamente terá uma boa
chance de prosperidade econômica e de estabilidade, que por sinal é o desejo de
vários países, principalmente China, Rússia e Irã.
As
contradições que surgem no discurso de Trump, se observarmos o que ele afirmou
na campanha eleitoral em comparação com as indicações que fez para postos
chave, causaram espanto e continuam a causar preocupação, levando o Irã, a
China e a Rússia a não ter muita esperança de cooperação futura com Washington.
A possibilidade de um diálogo razoável parece estar se esvanecendo, o que faz
crescer a esperança de uma aceleração na integração da Eurásia, deixando pouco
espaço para as intenções inescrutáveis da nova administração dos Estados
Unidos.
Uma ordem
mundial harmoniosa, com responsabilidade dividida entre Estados Unidos, Rússia
e China parece uma utopia irrealizável. Ainda não temos no horizonte os sinais
de um conflito iminente com o objetivo de impor a velha ordem unipolar em um
mundo multipolar. Porém a possibilidade de Trump se render à postura neocon,
apesar de difícil não é impossível de imaginar (afinal de contas, trata-se dos
Estados Unidos, uma nação que por setenta anos tenta impor seu modo de vida ao
resto do mundo), mas por que excluir a possibilidade de que mesmo Trump possa
ser convertido à religião do excepcionalismo? Afinal, quanta confiança podemos
depositar nos políticos? Você sabe a resposta.
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