Nos recônditos profundos da Trumpologia – a nova disciplina infestada de 'especialistas', todos tentando decodificar o novo governo norte-americano – tornou-se moda zombar do estrategista chefe da Casa Branca Steve Bannon, como se se tratasse de criatura sociopata do pântano estilo Jurassic Park, um "quase-fascista" comparável a islamofascistas.
(Mesmo que Bannon só metaforicamente opere como degolador em chefe.)
Descartar Bannon como se fosse uma espécie de Maquiavel/Richelieu remixado para o século 21 que veste calças cobertas de bolsos e gravatas estranhíssimas é resposta barata, de adolescente entediado. Kelyanne Conway pode até ser "especialista em luta-de-faca, com palavras"; Jared Kushner pode até ter tomado a linha D do trem dos negócios imobiliários em Manhattan para vir fazer-se de secretário de Estado 'sombra', com cadeira cativa na sala de situação. Mas o homem a estudar nos detalhes mais excruciantes tem de ser Bannon, que devora ensaios de história e teoria política de café da manhã. Quem quiser descartá-lo que o descarte. E pague o preço.
O Maquiavel pós-verdade por trás do mais poderoso Príncipe que jamais houve vê nossa conjuntura geopolítica como a batalha derradeira entre o Bem e o Mal (não, não se aplica a ele o veredito de Nietzsche). "Bem" no nosso caso é a civilização cristã e sua história de dois milênios – com um possível lugar de possível honra para o Iluminismo e a Revolução Industrial.
Em contraposição, o "mal" ostenta um elenco de personagens do gênero "ameaça existencial" – de elites tecnocratas/pós-modernas (o inimigo interno), ao Islã (o inimigo ao largo). Até a China, por causa do confucionismo ateísta, pode ser retratada como "mal".
Assim os campos estão claramente demarcados. Nuança é coisa de traidor. E a única trilha até a vitória, pela doutrina Bannon, é uma devastadora "Choque e Pavor" contra o "sistema". Já me referi à abordagem leninista que Bannon construiu, sobre como capturar e manter o poder e destruir a velha ordem. Mas o que vem por aí está mais para Lênin encontra-se com Apocalypse Now.
Na corte do Rei Tangerina
A doutrina Bannon encharcada no lado escuro foi modelada por uns poucos seletos livros. O volume crucial é, sem dúvida: The Fourth Turning [aprox. 'a quarta virada', ou 'a quarta fase'], de William Strauss e Neil Howe.
A teoria da história de Strauss e Howe reza que a cada ciclo de 80/100 anos – chamado saecula – há uma grande "virada". O conceito vem dos estoicos na Grécia Antiga – berço da civilização ocidental. Ao final de alguns dados saecula, é inevitável uma ecpirose [do grego ekpyrosis] – um cataclismo; a velha ordem é destruída e nasce uma nova ordem.
Acompanhando o pensamento de Strauss e Howe, Bannon acredita que estamos agora bem no meio da Quarta Virada. Strauss e Howe identificaram as três primeiras, em termos norte-americanos, como a Guerra Revolucionária; a Guerra Civil; e a Grande Depressão seguida pela 2ª Guerra Mundial. Bannon vê o início da Quarta Virada na crise financeira de 2008, ainda em processo de metástases, que levou diretamente à vitória de Trump.
O historiador David Kaiser, que lecionou em Harvard e na Academia Militar Naval, acrescenta um indispensável contexto. Kaiser entrevistou Bannon em detalhe e confirma que Bannon "esperava uma nova e talvez ainda maior guerra como parte da crise atual, e absolutamente não parecia entusiasmado por essa perspectiva."
O outro livro crucial para a doutrina Bannon é Antifrágil, de Nassim Taleb, que rasga em tiras as "elites globais", as mesmas hoje aterrorizadas ante o fenômeno Trump: "Estamos assistindo ao crescimento de uma nova classe de heróis ao contrário, quer dizer, burocratas, banqueiros, membros da I.A.N.D (International Association of Name Droppers [aprox. Associação Internacional dos Sobrenomes Citáveis]) que vão a Davos; e acadêmicos com muito poder e nenhum defeito e/ou [dever de] transparência [orig. accountability[1]]. Essa gente joga com o sistema, e os cidadãos pagam o preço."
Há também The Flight 93 Election; não um livro, mas um postado de internet assinado por Publius Decius Mus, também conhecido como Michael Anton, ex-escritor de discursos para Rudy Giuliani, ex-prefeito de Nova York, e do Conselho de Segurança Nacional de George W. Bush, e ex-diretor-gerente da gigante BlackRock, de Wall Street.
Impossível não reconhecer que Publius Decius Mus foi pena afiadíssima; Tito Lívio, em sua History of Rome, apresenta Mus como um cônsul romano que sacrificou a própria vida para conduzir seu exército em batalha.
Flight 93 argumenta para demonstrar que EUA e o Ocidente são avião em rota de se espatifar; atacar a imigração é indispensável para impedir o "separatismo étnico"; e Trump é a última chance no [confronto-tiroteiro no] O.K. Corral para impedir total colapso da civilização.
Mas a coisa só melhora. Anton trabalha hoje num cargo político, como parte do National Security Council – o que significa que trabalhará bem próximo de Bannon para implementar o Nacionalismo Neo-Popular [orig. New Populist Nationalism].
Canalizar Andrew Jackson
Sabe-se que Trump pendurou um retrato de Andrew Jackson – o 7º presidente dos EUA – no Salão Oval. Bannon descreve acertadamente o discurso de posse de Trump como "Jacksoniano."
Os paralelos são fascinantes. Andrew Jackson, alto, desengonçado, de ossos talhados a machado, feroz, ressentido (contra todos os inimigos) foi outsider que chegou a Washington saído diretamente do Tennessee, que cresceu no interior duro do que antes foi a extensão ocidental da Carolina do Norte. Com certeza não tinha estofo de estadista. Jackson não tinha ares de político tradicional nem agia como um. Thomas Jefferson – codinome "o establishment" – descartou-o logo como homem de instintos selvagens.
Jackson não era fã de raciocínios sutis, elaborados. Era rude, e, repito, ressentido de todos que se atrevessem a discordar dele. Mas foi popular exatamente por causa da rudeza; afinal, foi representante autêntico do país [pobre, magro, seco como biscoito duro, do sul branco pobre] "cracker".
O que nos leva a outro livro crucial que Bannon com certeza leu: White Trash: The 440-Year Untold History of Class in America, [aprox. Lixo branco: 440 anos da história de classe não contada nos EUA], de Nancy Isenberg.
Nesse estudo devastador, Isenberg detalha convincentemente como a primeira República dos EUA foi país "cracker", de posseiros – "duas palavras que se tornaram sinônimos de "imigrados sem terras". Naqueles tempos duros, "vida de cidade era para pequena minoria da população, com a maioria rural expulsa para fora dos limites da civilização", muito distante dos "cultivadores comercialmente orientados de Jefferson. "Cracker" e "posseiros" [ing. squatter] foram americanismos, que atualizaram "noções inglesas herdadas, de ociosidade e indolência." E isso, como Steinberg observa, acrescentou "uma nova dimensão de classe ao significado de democracia".
O governo de Jackson jamais teve a ver com igualdade: foi sempre de expansão agressiva – como na migração forçada da Nação Cherokee, expulsa de suas terras ancestrais a leste do Mississippi, sem que Jackson desse nem qualquer mínima atenção à opinião da Suprema Corte.
Jackson via "ameaças" por todos os lados: norte-americanos autóctones, posseiros rivais, todos seus adversários políticos e, sobretudo – como se adivinhasse o que seria o establishment contemporâneo – os "bagres ensaboados" do leste, que usavam "palavras enroladas".
Para Jackson, disputas territoriais se tinha de resolver à moda "Atire. Faça o meu dia" – não com palavreado enrolado. Sua política para os povos nativos resumiu-se ao direito de exercer "vingança de retaliação" contra "bárbaros sangrentos desumanos". Lei internacional? Questiúnculas constitucionais? Os jacksonianos sempre respondiam que ele foi o patriota perfeito, portanto, tais "detalhes" nada alteram. Os jacksonianos, por falar deles, eram sempre ridicularizados pelo mau gosto ao vestir e pelos maus modos: predecessores da "cesta de deploráveis" de Hillary Clinton.
O que Bannon pode com certeza aproveitar da leitura de Isenberg é o modo como ela destroi metodicamente "a mitificação histórica", um passado norte-americano idealizado que "repousa exclusivamente sobre Pilgrims de ficção, ou da santificada geração de 1776": "E assim chegamos à narrativa puritana primordial de uma comunidade sentimental e de recomendável ética do trabalho". Com o corolário inevitável de que "os sem-terra, os pobres, os progenitores das futuras gerações de lixo branco foram convenientemente 'desaparecidos' da saga da fundação nacional".
E isso dinamita totalmente a pedra inaugural sobre a qual se ergueu o Excepcionalismo Norte-americano. Na realidade, a maioria dos colonos nos EUA jamais viram seu exílio forçado como 'a construção' de uma "Cidade sobre uma Colina" [orig. "City Upon a Hill"]; "durante os anos 1600s, longe de serem estimados como valorosos cidadãos britânicos, a grande maioria dos primeiros colonos foram classificados como população excedente e "lixo" dispendioso.
Esses "descartáveis" foram os predecessores da galáxia do lixo branco/"deploráveis" – a maior parte dos quais, pode-se dizer, votaram em Trump. A doutrina Bannon exige atrair e conservar a atenção concentrada e o apoio deles todos, se é que alguém quer vencer a luta apocalíptica da Quarta Virada. Assim sendo, Andrew Jackson Trump, contra todas as probabilidades, contra todos os inimigos, terá de corresponder ao momento – e cumprir seu destino como Salvador da Cristandade.
[1] Orig. accountability. É
palavra quase intraduzível ao português do Brasil-2017, e um poço de
significados ocultados. Pode-se tentar definir accountability como: (i) o traço abstrato que
define tudo (pessoas, animais, estados, governos e/ou objetos) que tenha obrigação/necessidade/destino de prestar
contas do que faça; mas a
palavra também designa necessariamente (ii) tudo (pessoas, animais, estado,
governos e/ou objetos) que tenha os
meios necessários (imprescindíveis ou apenas úteis) para exigir e cobrar aquelas contas
que sejam prestadas. Se as contas não forem (i) prestadas e/ou não forem
(ii) exigidas e examinadas até o diagnóstico, não se pode falar de accountability.
Não por acaso, a língua portuguesa do Brasil 'apagou' desse conceito toda a parte (ii) relacionada aos meios para exigir e cobrar contas prestadas. No Brasil da tucanaria USP-privateira, todos fomos ensinados a falar de "transparência" como se fosse um atributo espiritual, das almas, nunca das contas públicas; e a apenas elogiar a "transparência", nunca a exigir que uns transpareçam e outros examinem o que venha a transparecer [NTs].
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