18 de janeiro de 2016 – Alexander Mercouris
tradução de btpsilveira
O levantamento das sanções é uma vitória inequívoca
do Irã, fortalecendo sua posição no cenário regional e deixando intacta sua capacidade
nuclear.
As sanções, para começo de conversa, nunca deveriam
ter sido impostas, mas a confirmação da suspensão delas é uma vitória importante
para o Irã, de forma cabal.
Como eu disse em um artigo que escrevi para a agência
Sputnik em abril do ano passado, tudo sugeria que o Irã realmente teve por algum
tempo a intenção de manter um programa para a obtenção de armas nucleares.
No entanto, o programa iraniano nunca teve a intenção
de ameaçar os Estados Unidos, ou Israel ou ainda – desnecessário dizer – a União
Europeia.
A liderança iraniana sempre esteve consciente de
que um programa nuclear que tivesse como alvo esses países mais provavelmente serviria
para provocar um ataque contra o Irã do que como contenção, e o Irã talvez não
sobrevivesse ao ataque.
Em vez disso, o programa nuclear iraniano tinha a
intenção de servir como contenção de um ataque nuclear de seu maior inimigo
regional – o Iraque de Saddam Hussein – que, como é sabido, tinha um programa destinado a fabricar armas nucleares
na década que antecedeu a Guerra do Golfo de 1991.
Tendo lutado uma Guerra amarga contra Saddam
Hussein entre 1980 e 1988, o Irã não se podia dar ao luxo de permitir que o
Iraque adquirisse armas nucleares enquanto permanecia desarmado. É
compreensível que a liderança iraniana tenha procurado conter o programa de
armas nucleares de Saddam através de seu próprio programa.
No entanto, todas as evidências apontam para o fato
de que o programa iraniano para adquirir armas nucleares tenha arrefecido
consideravelmente após a derrota de Saddam Hussein em 1991, e completamente
abandonado após sua queda em 2003.
Não apenas todas as evidências apontavam para isso,
como era também a opinião da comunidade de inteligência dos Estados Unidos, que
confirmou publicamente em 2007 que o Irã não mais estava procurando desenvolver
um programa para armas nucleares.
Nem mesmo o governo dos Estados Unidos colocava
este fato em questão. Eis o que o Secretário de Estado dos Estados Unidos,
John Kerry disse sobre o programa
nuclear iraniano em uma entrevista para a Reuters em agosto de 2015:
“Nosso
julgamento é de que o Irã claramente esteve perseguindo durante um certo
período a obtenção de uma arma nuclear. Não há dúvidas sobre isso. Em 2003,
foram pegos em flagrante com instalações que não poderiam possuir e com
materiais que não deveriam estar em suas mãos... Mas eles não conseguiram
desenvolver uma arma – e de acordo com o nosso julgamento e de todos os nossos
aliados, eles não mais estão à busca de uma arma por si só desde este período
de tempo.”
Por consequência só pode ser considerado no mínimo
esquisito que os Estados Unidos exijam que o Irã descontinue seu programa para
armas nucleares, exigência tomada justamente após o Irã ter – e os estados
Unidos sabem disso – abandonado seu programa de armas nucleares.
O Irã não só se viu encarando uma sucessão de
exigências ameaçadoras para desistir de seu programa nuclear que os Estados
Unidos sabiam que ele já tinha abandonado, mas as exigências foram combinadas
com sanções cada vez mais duras, culminando com o pacote mais abrangente dessas
sanções, impostas ao Irã recentemente, em 2012.
As exigências e as sanções que as acompanhavam
foram seguidas por clamorosas ondas de propaganda enganosa contra o Irã.
Seus líderes foram chamados de fanáticos religiosos
e apoiadores do terrorismo. Foram acusados de possuírem planos genocidas e
megalomaníacos, mesmo sem que a menor evidência disso tenha sido jamais
exibida.
O Irã foi acusado de planejar agressões contra seus
vizinhos, mesmo sem nenhuma evidência e embora o maior ato de agressão levado a
efeito na história recente do Oriente Médio tenha sido o ataque de Saddam
contra o Irã – ao qual o ocidente e os países árabes apoiaram.
Enquanto isso, o país era apresentado como uma
teocracia medieval, repressiva e reacionária, o que – apesar de todos os seus problemas
– ninguém que conheça minimamente o país pode acreditar.
Tudo isso aconteceu ao mesmo tempo em que contínuas
ameaças de ação militar eram feitas e que – de acordo com vários relatos – em mais
de uma ocasião estiveram perigosamente perto de realmente acontecer, e que só
não aconteceram realmente pela forte oposição de militares dos Estados Unidos.
Por que essa pressão implacável contra um país por supostamente
ter um programa de armas nucleares o qual na realidade – e todos sabiam disso –
já tinha sido abandonado?
A resposta lógica é que os Estados Unidos e seus
aliados regionais – Israel e Arábia Saudita – ficaram alarmados com a
influência adquirida pelo Irã na região em seguida à derrubada pelos EUA do
regime de Saddam Hussein.
Não importam quais eram as intenções dos EUA quando
derrubou Saddam Hussein, mas uma posição de dominância regional para uma
(relativa) democracia independente como o Irã definitivamente não era uma delas.
Pois foi exatamente o que restou da derrocada de
Saddam Hussein.
Quando o Hezbollah, aliado do Irã, derrotou Israel
em 2006, para Washington – e Riad e Jerusalém – isso foi a gota d’água.
O resultado foi o lançamento de uma implacável
campanha contra o Irã, baseado em um programa de obtenção de armas nucleares
que o mundo inteiro sabia que não existia.
Inevitavelmente, pelo menos para dar cores de coerência
para a campanha, ela foi acrescida da exigência de que o Irã abandonasse
qualquer tentativa independente de desenvolver capacidades nucleares, de
qualquer forma – seja para uso militar ou para uso civil.
Na essência, a campanha inteira resumiu-se a apenas
isso, depois de alguns anos.
Não é surpresa nenhuma que o Irã tenha rejeitado as
exigências – afinal, qualquer país que preze a sua própria independência teria
igualmente rejeitado, pois o que se exigiu era que abdicasse de fazer algo que
tinha todo o direito de fazer.
Enquanto isso, conforme crescia a pressão contra o
Irã, governos e povos do Oriente Médio que eram vistos como reais ou potenciais
aliados do Irã – incluindo o governo sírio do Presidente Bashar Al-Assad, os movimentos
pela democracia no Barein e na Arábia Saudita, e a movimentação dos Houtis no
Iêmen, também foram colocados sob ataque.
Resultado: o Oriente Médio engolfado na
instabilidade e na guerra.
O levantamento das sanções contra o Irã representa
nada menos que o fracasso dessa política.
Isso não aconteceu porque o Irã tenha feito
qualquer concessão quanto ao desenvolvimento de seu programa nuclear.
As concessões que o Irã fez não comprometeram sua condição
de desenvolver capacidade nuclear – a qual o Irã vem desenvolvendo há muitos
anos neste instante, evitando uma linha vermelha que não estava preparado para
atravessar. Caso os Estados Unidos quisessem um acordo nestas bases, já o
poderia ter alcançado há muito.
O acordo aconteceu por duas outras razões.
A primeira razão é que o Irã não cedeu às pressões.
Ao invés de desistir de seu programa nuclear o Irã
reagiu aperfeiçoando-o até o ponto em que chegou a dominar todo o ciclo do
combustível nuclear – e dessa forma mostrou que nada havia que os EUA pudessem
fazer para detê-lo.
A segunda razão foi que em 2014 as grandes potências
eurasianas – Rússia e China – finalmente exigiram um fim para a política das
sanções.
A chave para entender a questão reside nos rumores
que começaram a surgir no outono de 2014 de que a Rússia e o Irã estavam para
concluir um acordo de troca comercial “petróleo por bens” e que a Rússia estava
considerando sua decisão anterior de não fornecer ao Irã o sistema de mísseis
S-300.
As notícias, juntamente com o medo de que a China
estivesse pensando em maneiras de financiar o Irã através das novas instituições
financeiras que estava por lançar, causaram alarme em Washington, pela ameaça
de que todo o regime de sanções estivesse à beira do colapso.
Particularmente preocupante para Washington foi o
medo de que, na sequência dos movimentos russos e chineses, poderia se tornar
impossível para os Estados Unidos manter seus aliados europeus na linha de
conduta necessária para a continuação da política de imposição de sanções, já
que eles poderiam não mais ver sentido nestas atitudes.
Resultado: o Irã ofereceu aos Estados Unidos uma
maneira de manter as aparências, através do acordo, e os Estados Unidos se viram
sem opção a não ser aceitar.
A seguir, tudo o que o Secretário de Estado John
Kerry teve a dizer sobre o assunto, na mesma entrevista citada acima, para a
Reuters:
“Daí todo mundo pensa – ‘Oh, não estamos sendo firmes; nós, os Estados
Unidos da América, temos nossas sanções secundárias; podemos forçar as pessoas
a fazerem o que quisermos’ Na realidade, ouvi demais este tipo de argumentação
pela televisão nesta manhã. Tenho ouvido isso de muitas organizações que
trabalham em oposição a esse acordo. Vivem dizendo por aí, ‘ora, os EUA são
fortes o suficiente, nossos bancos são possantes o bastante; podemos
simplesmente bater o martelo e forçar nossos amigos a aceitarem na marra o que
queremos que eles façam’.”
Veja só – temos um monte de pessoas de negócios nesta sala. Você está de
palhaçada comigo? Então os Estados Unidos vão começar a sancionar os próprios
aliados e seus bancos e suas empresas, porque não conseguimos chegar a um
acordo e então vamos forçá-los a fazer o que queremos que eles façam, mesmo
tendo eles concordado com um acordo apresentado? Você está brincando?
Meus amigos, isso não passa de fórmula para que eles se afastem o mais
rápido possível da Ucrânia, onde eles já sofrem o bastante e estão prontinhos
para dizer: ‘Bem a nossa parte está feita’. Prontinhos também para afirmar, em
muitos casos: ‘Bom. Na realidade somos os únicos a pagar a conta pelas suas
sanções’. Nós – e foi Obama quem saiu a campo para aplicar um regime de sanções
que realmente funcionou. Para... eu fui até a China. Convencemos a China, ‘não
compre mais petróleo’. Acabamos persuadindo a Índia e outros países a dar um
passo atrás.
Você pode nos imaginar
tentando punir essas pessoas, esses países, depois de ter um trabalhão para convencê-los
a sancionar o Irã, fase após fase até levar o Irã a uma mesa de negociações, e
quando eles resolvem não só negociar, mas apresentar uma proposta de acordo,
nós simplesmente resolvemos rejeitar tudo e em seguida dizer: vocês têm que
obedecer as nossas regras sobre as sanções na base do queira ou não queira?
Não passa de receita
rápida, meus caros amigos, pessoas de negócios presentes, para que o dólar
(norte)americano deixe de ser a moeda de reserva do mundo – e já há barulho lá
fora...”
O que Kerry estava mesmo dizendo é que os Estados
Unidos não tinham escolha. Se não concordassem com o acordo oferecido pelo Irã,
o regime de sanções desabaria, levando a uma situação de derrota humilhante
para os Estados Unidos.
Em vez disso, ante a possibilidade de desastre
dessa natureza, os EUA não tiveram alternativa a não ser concordar com o acordo
oferecido pelo Irã.
Toda a embrulhada significa o seguinte: um acordo
para levantar as sanções em troca de limites para um programa nuclear traz
implícita a admissão por Kerry, em primeiro lugar, que o programa iraniano
nunca buscou a obtenção de armas nucleares.
Entretanto, o acordo continua a deixar o Irã no domínio
da tecnologia que já desenvolveu. De fato, conforme os especialistas, o acordo
deixa em mãos dos iranianos material e tecnologia que possibilitam o
desenvolvimento de uma arma nuclear em cerca de um ano, caso seja a sua escolha.
A entrevista de Kerry, no entanto, não foi muito
divulgada, apesar – e talvez por isso mesmo – de lançar uma fascinante luz
sobre a maneira de pensar do governo dos Estados Unidos.
Em primeiro lugar mostra que para além de toda a
aparência externa, os Estados Unidos estão muito preocupados com a posição do
dólar dos Estados Unidos como moeda de reserva mundial e nervosamente impedidos
de fazer qualquer coisa – como, por exemplo, ameaçar seus aliados europeus com
sanções – que possa minar essa posição.
E também que o governo (norte)americano não
concorda com aqueles que, como o economista Paul Krugman, dizem que o status do
dólar como moeda de reserva não tem importância.
Além
do exposto, a entrevista de Kerry também clarifica o fato de que por fora das
demonstrações de unidade de propósitos, nos bastidores cresce uma pletora de
críticas contra o regime de sanções contra a Rússia, com os governos europeus
perdendo claramente o entusiasmo quanto a isso – da mesma forma que não
aderiram entusiasticamente quando do início das sanções que os Estados Unidos
os persuadiram a aplicar contra o Irã.
Finalmente,
mostra também que apesar da conversa dura e arrogante do governo dos EUA, sua
capacidade de impor sua vontade aos aliados europeus se mostra limitada e os
EUA sabem disso.
Quando
os governos europeus se unem para derrotar determinada política, os Estados
Unidos não tem opção a não ser recuar e aceitar a derrota.
Entretanto,
em última análise o que mais importou na entrevista de Kerry foi o cheiro do
revés.
Mesmo
com o esforço de Kerry para mostrar apenas o melhor lado do acordo com o Irã
que ele foi capaz, no final ele não pode surrupiar o fato de que foi a iminente
derrocada do sistema de sanções que forçou a mão contra os EUA, obrigando-os a
chegar a um acordo com o Irã que de outra forma jamais aconteceria.
A
Rússia pode tirar do episódio algumas importantes lições.
O
Irã é muito menor, mais pobre e mais fraco como país que a Rússia. Mesmo não
sendo um país subdesenvolvido, o Irã não tem os recursos de ciência, indústria
e tecnologia que a Rússia tem.
Além
disso, o Irã não dispõe da influência global nem da vantagem de ser membro
permanente do Conselho de Segurança da ONU que a Rússia tem.
As
eventuais sanções aplicadas pelos Estados Unidos contra o Irã, machucam muito
mais o Irã que as sanções impostas pelos Estados Unidos contra a Rússia a
prejudicam.
Da
mesma forma que a Rússia, também o Irã possui uma minoria pequena mas
barulhenta, que deseja uma aproximação com os Estados Unidos praticamente a qualquer
preço. Em 2009 essa minoria falhou ao tentar provocar uma revolução colorida em
Teerã – da mesma maneira que falhou a minoria russa – ao tentar alguma coisa
parecida com uma revolução colorida em Moscou, em 2011.
No final da história, ao permanecer firme na sua
essência, agindo todo o tempo com a máxima flexibilidade possível, o Irã viu o
desafio terminar.
Como resultado, o Irã emergiu da situação como o
inequívoco vencedor, com sua posição atual mais forte que a de que desfrutava
há uma década – antes do início dos ataques.
Se o Irã pode vencer esse tipo de desafio contra os
Estados Unidos, então a Rússia também pode.
A Rússia está em muito melhor posição que o Irã
estava.
Não há
razão, de fato, pela qual a Rússia não deva fazer isso, nem para duvidar de que
realmente o fará.
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