"A Rússia não reivindica papel
de superpotência"
Presidente Vladimir Putin, entrevista ao BILD
11/1/2016, Socchi, Rússia (publicada em duas partes)
Nikolaus Blome (ed.-chefe), Kai Diekmann (publisher) e Daniel Biskup (fotos)
11/1/2016, Socchi, Rússia (publicada em duas partes)
Nikolaus Blome (ed.-chefe), Kai Diekmann (publisher) e Daniel Biskup (fotos)
Traduzido pelo pessoal da Vila
Vudu
BILD: Sr. presidente, pode-se dizer que a comunidade internacional já ostracizou a Rússia. Não lhe permitem sequer participar das reuniões do G8 dos líderes das principais nações industrializadas. Essa medida o perturba?
Pres. Putin: Mesmo antes, sempre tive a impressão de que a Rússia não era membro pleno do grupo G8. Os ministros de Relações Exteriores, por exemplo, continuaram a reunir-se no velho formato de sete estados importantes, o G7, sem Rússia.
BILD: E o que o senhor pensou quando o presidente da superpotência EUA, Barack Obama, zombou da Rússia, chamando-a de "potência regional"?
Pres. Putin: Para ser honesto, não levei a sério, francamente. Claro, qualquer chefe de estado pode pensar o que queira e dizer como bem entenda. Barack Obama também diz que os EUA são "nação escolhida". Também não se pode levar a sério.
BILD: A Rússia não quer ser superpotência?
Pres. Putin: Não, não reivindicamos para nós o papel de superpotência. É caro demais e desnecessário. Continuamos a ser uma das principais economias do mundo. Quem fale de "potência regional" bem faria se estudasse o planisfério. No oeste, nossa região é a Europa. No leste, nossa região é EUA, pelo Alasca, e o Japão. No norte, nossa região inclui o Canadá, pelo Oceano Ártico. Ao tentar rebaixar a importância da Rússia no mundo, sempre tentam 'promover' o país de cada um. É erro.
BILD: O senhor vai tentar levar a Rússia outra vez para as reuniões do G8?
Pres. Putin: Em 2014, convidamos para que fizessem uma reunião do G8 na Rússia. Eles é que não quiseram vir. A Rússia sempre tem disposição para as reuniões do G8. Mas, dessa vez, ainda não compramos passagens.
BILD: Que valor tem, para o senhor, as reuniões do G8? O quanto elas fazem falta à Rússia?
Pres. Putin: De modo geral, as reuniões do G8 são bem interessantes, porque é bom trocar ideias, conhecer posições alternativas e expor o que a Rússia pensa. Continuamos a fazer essa troca com os estados do G20, com os países exportadores de petróleo da região do Pacífico Asiático (APEC) e com os países emergentes (BRICS).
BILD: Como está o relacionamento com a OTAN? O antigo Conselho OTAN-Rússia ainda existe.
Pres. Putin: Outra cooperação que não congelamos. A Rússia deseja voltar a cooperar com a OTAN. Há muitas razões, e oportunidades não faltam. Mas é como na vida real: amor feliz, só se for recíproco. Se alguém não quer cooperar conosco, tudo bem, saímos dessa.
BILD: Não é só a falta de cooperação que preocupa. Agora há também confronto direto com um país da OTAN. A Turquia derrubou recentemente um jato russo, sobre a fronteira turco-síria. Incidente desse tipo poderia – por acidente, digamos – incendiar o mundo inteiro?
Pres. Putin: Turquia é parte da OTAN, mas não foi atacada. A OTAN portanto não tem de proteger a Turquia, e nossos problemas com a Turquia nada têm a ver com o país ser ou não ser membro da OTAN. A via mais adequada seria o governo turco pedir desculpas diplomáticas por ter derrubado o avião – o que é crime de guerra –, em vez de procurar ajuda do comando da OTAN. É muito estranho. Se Turquia persegue interesses só dela na região, nem Alemanha nem OTAN teriam qualquer obrigação de apoiar a Turquia. É ou não é?
BILD: Qual o risco de incidente desse tipo escalar?
Pres. Putin: Espero sinceramente que eventos desse tipo não se convertam em grandes conflitos militares. Mas se interesses e a segurança da Rússia for ameaçada, a Rússia resistirá. Todos devem ter isso em mente.
BILD: O senhor falou da região, digo, do Oriente Próximo e Médio. Sob seu comando, a Rússia também interveio por meios militares, na Síria. Muitos especialistas e políticos dizem no ocidente que os ataques russos não visam os terroristas islamistas do ISIS, mas os rebeldes que combatem contra o governante sírio. Em resumo: a Rússia está bombardeando o pessoal errado?
(O intérprete traduz a resposta de Putin, para o alemão como "Você está dizendo as coisas de modo errado". Putin ri e intervém, falando em alemão: "O que eu disse foi 'Tudo isso é mentira'. Foi isso que eu disse." Imediatamente, sério, volta a falar em russo.)
Pres. Putin: O vídeo que serviu de 'prova' para essa 'denúncia' foi feito antes até de as forças russas começarem aquela missão. É fácil provar, mesmo que nossos críticos recusem-se a acreditar nos próprios olhos. Por falar nisso, por que não estão preocupados com os pilotos norte-americanos que bombardearam um hospital dos "Médicos sem Fronteiras", em Kunduz, Afeganistão? Morreu muita gente ali, mas os jornalistas estão mudos.
BILD: Não é verdade, muitos jornais e revistas cobriram.
Pres. Putin: Ora, podem ter mencionado umas poucas vezes e, isso, só porque há não afegãos entre as vítimas. Em seguida, o incidente novamente foi esquecido. E quem ainda recorda os casamentos no Afeganistão, que eram alvos dos bombardeios dos EUA e nos quais foram assassinados centenas de civis inocentes? Nossos pilotos não bombardeiam alvos civis, a menos que você considere um comboio de milhares de caminhões-tanque carregados de petróleo roubado, praticamente um oleoduto 'vivo', de petróleo roubado, alvo civil. Esse tipo de alvo, sim, bombardeamos. Mas franceses e norte-americanos também bombardeiam esses alvos.
BILD: O presidente sírio bombardeia o próprio povo e é responsável por milhares de mortes. É fato. Assad é seu aliado? Se é, por que é?
Pres. Putin: Isso não é pergunta: isso é uma armadilha. Também acho que o presidente Assad fez muitas coisas erradas ao longo desse conflito. Mas o conflito não teria se prolongado nem se alastrado tanto, se não tivesse recebido reforço de fora da Síria – armas, dinheiro e combatentes. Quem é responsável por isso? O governo Assad, que está lutando para impedir que a Síria seja esfacelada? Ou os rebeldes, que querem pulverizar o país e por isso combatem contra o governo da Síria?
BILD: Qual o objetivo da Rússia no conflito sírio?
Pres. Putin: Posso dizer-lhe o que nós não queremos: não queremos que a Síria termine como Iraque ou Líbia. Veja o Egito: é preciso reconhecer o mérito do presidente Sisi que assumiu a responsabilidade e o poder num momento de emergência, para estabilizar o país. É preciso tentar qualquer coisa, para garantir apoio aos legítimos governantes na Síria. Evidentemente não significa que tudo possa continuar como antes. Tão logo o país esteja estabilizado, terá de haver reforma da Constituição, e depois eleições presidenciais. Só o povo sírio pode decidir que deve governar o país.
BILD: O senhor realmente acredita que Assad ainda é governo legítimo na Síria? Depois de ter bombardeado o próprio povo?.
Pres. Putin: É evidente, qualquer um vê, que Assad não está combatendo contra o próprio povo, mas, sim, contra os que tentaram golpe armado contra o governo. Se a população civil também sofre e também é ferida, não é culpa de Assad, mas dos golpistas armados e dos que os apoiam de fora da Síria. Nada disso significa que tudo esteja muito bem na Síria ou que Assad não cometa erros.
BILD: Se houver mesmo eleições presidenciais e se Assad perder, a Rússia lhe garantirá asilo?
Pres. Putin: Cedo demais para pensar nisso. Mas não há dúvidas de que foi muito mais difícil, com certeza, dar asilo ao Sr. Snowden na Rússia, do que seria, no caso de Assad. Seja como for, antes a população síria terá de se manifestar pelo voto. Depois veremos se Assad terá de deixar o país, caso perca as eleições. De qualquer modo, não é precondição. Até lá, a Rússia continuará a combater contra o ISIS e aqueles rebeldes anti-Assad que cooperam com o ISIS. Ao mesmo tempo, apoiaremos as forças de Assad que lutam contra o ISIS – e também forças anti-Assad que realmente lutem contra o ISIS. Complicado, sabemos que é. Muito complicado.
BILD: Em que medida a emergência de conflito entre Irã e Arábia Saudita complica ainda mais o conflito sírio?
Pres. Putin: Esse conflito realmente torna tudo muito mais complicado: resolver a questão síria, combater contra o terrorismo, pôr fim à crise dos refugiados. Não quero comentar sobre se se deve esperar guerra declarada entre esses dois estados, porque seria especulação. A Rússia mantém boas relações com os dois – com o Irã e com a Arábia Saudita. Mas foi erro grave dos líderes sauditas terem ordenado a execução do clérigo xiita. Era homem de paz, não lutava armado. Na Rússia, jamais se aplicou pena de morte, nem nos piores tempos do terrorismo, nos anos 90s e 2000s. Por outro lado, tampouco foi adequado aquele ataque da multidão contra a embaixada da Arábia Saudita em Teerã.
BILD: Sr. presidente, uma última pergunta: quando a Rússia hospedou os Jogos de Inverno em 2014, houve muitas críticas referentes à própria democracia russa. O senhor espera debate semelhante, antes da Copa do Mundo FIFA-2018?
(Traduzindo sem parar por quase duas horas, o intérprete está exaurido. Ouvindo-o, tem-se a impressão de que traduzir a pergunta é empreitada dificílima. Surge daí uma rápida troca de ideias sobre os idiomas, alemão e russo.)
BILD: A língua russa lhe parece mais complicada que o alemão?
Pres. Putin: O alemão é mais preciso. Mas o russo é mais versátil, mais colorido. Claro que a mesma riqueza se encontra nos grandes autores alemães.
(Espontaneamente, Putin põe-se a recitar em alemão: Ich weiß nicht, was soll es bedeuten, warum ich so traurig bin. Ein Märchen aus alten Zeiten, das kommt mir nicht aus dem Sinn" [aprox. Não posso determinar o sentido / da tristeza que enche meu peito. / Uma fábula antiga que a atravessa, não me sai da cabeça]. É quase literalmente o início de Loreley, poema de 1924, de Heinrich Heine, um clássico da língua alemã. Mas Putin para de repente e, impassível, volta a falar em russo.)[1]
Pres. Putin: Sobre a democracia na Rússia, minha opinião é que as potências gostam muito de falar sobre "liberdade", mas só como ferramenta de lavagem mental das próprias populações. Democracia significa que o povo tem poder e, por isso, pode influenciar o governo e o Estado; onde não seja assim, não há democracia. A Rússia teve longa experiência com sistema de partido único – e não retrocederemos para aquele tipo de coisa. Avançaremos, na direção de desenvolver e aperfeiçoar a nossa democracia. Até agora, já estão qualificados 77 partidos para concorrer às eleições parlamentares. Muitos governantes são eleitos em eleições diretas.
BILD: Mas as condições políticas na Rússia parecem diferentes do que se entende como democracia europeia.
Pres. Putin: Não existe modelo uniforme, global, de democracia. Quando se fala de democracia, são coisas diferentes de um país para outro. A noção é diferente na Índia, nos EUA, na Rússia ou na Europa. Nos EUA, por exemplo, duas vezes na história o presidente eleito foi alguém que recebeu menos votos diretos, um por cidadão, que o concorrente. Foi eleito pelos votos eleitorais. Significaria que os EUA não são democráticos? Claro que são.
Quanto as tentativas de desmoralizar os esportes, os esportistas ou a Copa do Mundo na Rússia são os mesmos velhos e sujos jogos políticos: é movimento estúpido e errado. Ainda que os países tenham problemas entre eles, as artes e os esportes não devem ser atingidos. Artes e esportes existem para unir os povos, não para dividi-los.
BILD: Sr. presidente, muito obrigado por essa conversa. *****
[1] "Putin viveu em Dresden quando servia à KGB soviética
nos anos 1980s, é falante fluente de alemão, e várias vezes falou com Merkel no
idioma dela" (de "O ganso da Mamãe Gansa já assou", 18/5/2015,
John Helmer, Moscou, Blog Dance with Bears, em redecastorphoto).
Comentários
Postar um comentário