29/12/2016, Sharmine Narwani,* RT
Tradução pelo Coletivo
de Tradutores da Vila Vudu
Aleppo Leste está libertada e a mudança de regime perdeu o brilho. Não surpreende que os inimigos da Síria já se ponham a promover o próximo grande objetivo: dividir o país. Como tantas predições que se ouviram sobre o conflito na Síria, dos quais poucas se realizaram, a 'partição' da Síria não acontecerá.
Em fevereiro, quando Aleppo Leste ainda estava inchada de incontáveis militantes aliados da al-Qaeda e treinados por instrutores ocidentais, jornalistas perguntaram ao presidente Bashar Assad da Síria: "O senhor acredita que possa reconquistar o controle sobre todo o território sírio?"
Ora, sim, disse Assad: "É objetivo que buscamos alcançar sem qualquer hesitação. Não faz sentido algum para nós dizer que cederemos qualquer porção de nosso território."
Nada que os políticos ocidentais tenham gostado de ouvir.
Primeiro, foi o secretário de Estado dos EUA John Kerry, que timidamente informou à Comissão de Relações Exteriores do Senado que o governo Obama talvez devesse de ter na manga um Plano B: "logo será tarde demais para a Síria manter sua integridade, se esperarmos muito."
Na sequência, James Stavridis, ex-Comandante Supremo da OTAN e chefe do Comando Europeu dos EUA fez publicar artigo na revista Foreign Policy intitulado "É tempo de considerar seriamente a divisão da Síria", no qual declarava que "a Síria como nação é cada vez mais só ficção."
E logo o diretor da CIA John Brennan juntou-se ao coro: "Já foi derramado sangue demais, não sei se até eu morrer conseguiremos voltar a [uma Síria unificada]."
Mas agora, com a devastadora derrota dos militantes apoiados pelo ocidente em Aleppo Leste, o dial volta a sintonizar-se nas conversas sobre dividir a Síria. Neoconservadores frenéticos e intervencionistas neoliberais enchem as páginas da mídia com a 'análises' a favor da 'partição' – todos fingindo que nem veem o fracasso desses cinco anos de 'prognósticos', assinados pelos mesmos 'especialistas', de que "Assad cairá".
Mas Assad compreende algo que analistas, jornalistas e políticos ocidentais parecem não compreender. Os aliados da Síria nessa guerra – Irã, Hezbollah, Iraque, Rússia, China – só demarcaram e defenderam e mantiveram duas linhas vermelhas decisivas, ao longo de todo o conflito:
– a primeira, que Assad só seria removido do governo se fosse derrotado pela maioria dos sírios, em eleição nacional;
– a segunda, que a Síria seria preservada como território sem 'partições'.
A lógica da Síria e seus aliados era simples. Derrubar regimes, remapear fronteiras, exércitos de mercenários para fazer guerras longe 'de casa', dividir para governar... sempre e só os mesmos velhos truques dos hegemons ocidentais, para conter a Síria. Sem a Síria, logo agressivamente encontrariam a trilha para atacar Moscou, Pequim e Teerã.
Em resumo, uma nova ordem mundial poderia emergir das cinzas do conflito sírio; mas para tanto Síria e aliados teriam de derrotar completa e absolutamente os objetivos de OTAN-CCG (Conselho de Cooperação do Golfo) e manter, custasse o que custasse, a integridade e a soberania do estado sírio.
Mudança calculada no equilíbrio de poder
Em 2013, já se podia prever que seria formada uma nova aliança de segurança focada no Oriente Médio para combater a ameaça dos jihadistas que crescia contra a Síria e seus vizinhos (vide mapa acima).
Já era claro que as guerras não regulares que os jihadistas espalhavam naquela região e seus poderosos financiadores ocidentais necessariamente levariam os quatro estados – Líbano, Síria, Iraque e Irã – a cooperar militarmente e politicamente para derrotar os grupos influenciados pelo wahhabismo que cresciam naqueles países. Um 'Arco de Segurança' teria de ser formado para proteger a integridade territorial desses quatro países e, com ele, uma visão de mundo de convergência que prepararia o palco para uma nova estrutura de segurança para o [a favor do] Oriente Médio.
Hoje, Líbano e Irã já têm fronteiras seguras do lado da Síria e do lado do Iraque. Estão organizadas a circulação e transferências de combatentes e conselheiros militares, de inteligência, armas entre todos esses quatro estados, com maior e bem-sucedida coordenação em terra e no espaço aéreo.
Rússia e China garantem cobertura de 'alta potência' para esse novo desenvolvimento – seja mediante o Conselho de Segurança da ONU ou mediante iniciativas militares, financeiras ou diplomáticas. Além disso, galvanizada pela ferocidade da luta pela Síria, Teerã, Moscou e Pequim fizeram avançar a nova ordem multilateral que buscam – reforçando a própria segurança regional, aprofundando alianças globais, forjando novas alianças e projetando e construindo instituição políticas, de segurança e financeiras que já competem com as existentes dominadas pelo ocidente.
Com o sucesso do Arco de Segurança na luta contra os grupos extremistas, tornou-se inadiável, para três estados vizinhos críticos, aproximar-se e participar dessa nova arquitetura de segurança regional: Egito, Turquia e Jordânia, cada um por razões diferentes.
Mas os novos 'membros' buscarão a nova zona de segurança, em primeiro lugar, porque já se deram conta de que se o governo central for fragilizado e se se consumar a fragmentação da Síria, o processo acabará por repercutir também nos demais países, para criar no Egito, na Turquia e na Jordânia tudo que foi criado na Síria: caos, instabilidade, terrorismo.
Egito: No governo do presidente Abdel Fattah el-Sisi, o Egito foi extraído do campo de influência dos patrões sauditas os quais, com Qatar e Turquia, foram os principais patrocinadores do extremismo na Síria, como no Iraque. No início de 2016, Sisi começou um movimento para afastar o país de vários tradicionais aliados ocidentais e regionais do Egito, e abriu a via para fortalecer o engajamento econômico, político e militar com Síria, Irã, Rússia e China.
A Dra. Christina Lin, da Escola de Estudos Internacionais Avançados [ing. SAIS] da Johns Hopkins University, explica: "Diferente de Washington, Sisi vê Assad como uma muralha secularista de defesa contra o extremismo islamista no Levante. Se Assad cair, Líbano e Jordânia cairão na sequência, e o Egito não quer acabar como a Líbia, com a Fraternidade e outros islamistas em luta de morte para destruir o país."
Em meses recentes, o Egito reaqueceu suas relações diplomáticas com o Irã, a cooperação militar com a Síria, e publicamente discordou de posições da Arábia Saudita. Mais importante, Sisi foi convidado por Irã e Rússia, para participar da mesa de negociações de paz para a Síria, e, nos bastidores, a China lança planos para investimento de $60 bilhões em infraestrutura, num Egito desesperadamente carente de dinheiro.
Turquia: Nenhum país foi mais aplicado adversário de Damasco que a Turquia – que financiou, capacitou e gerenciou o fluxo de terroristas através de sua fronteira sul, diretamente para dentro de território sírio. Mas o conflito sírio exauriu também a Turquia, trouxe novos ataques terroristas a cidades turcas, reviveu o conflito 'curdo', isolou o inconstante e imprevisível presidente Recep Tayyip, sacrificou a economia turca e acirrou a dura luta política doméstica, em toda a Turquia.
Assim, quando os russos alertaram Erdogan, pelo que se soube, sobre uma malfadada tentativa de golpe no verão passado – que os turcos não têm dúvidas de que foi inspirada pelos EUA – a orientação política do presidente começou a oscilar, e ele se pôs a mover-se passo a passa na direção de assumir vários compromissos com Irã e Rússia relacionados ao conflito sírio.
O primeiro grande gesto de Erdogan na direção de Teerã e Moscou foi limpar toda uma camada de jihadistas encastelados em Aleppo, com o que os aliados da Síria puderam usar sua força militar contra grupos afiliados da Al-Qaeda que ainda permaneciam no bairro ocupado. Logo depois da libertação de Aleppo, turcos, iranianos e russos novamente se reuniram para definir o conjunto seguinte de alvos, inclusive um cessar-fogo nacional – movimento que descartou os aliados ocidentais de Erdogan e deixou perfeitamente claro que ninguém precisa de EUA, Grã-Bretanha ou França na mesa em que se negociar a paz na Síria.
Jordânia: Durante grande parte do tempo ao longo do qual se arrasta o conflito sírio, os interesses da Jordânia foram subvertidos por patronos poderosos, que converteram o Reino Haxemita num antro para operações clandestinas das forças especiais a serviço do ocidente, quartel-general de agentes de inteligência do CCG e centro de treinamento de 'rebeldes'. Mas em anos recentes, o rei Abdullah da Jordânia foi forçado a enfrentar as consequências, para seu país financeiramente asfixiado, criadas pelo grande aumento no influxo de refugiados sírios e assustador aumento no radicalismo doméstico. Consequentemente, a Jordânia já há algum tempo vem partilhando inteligência com autoridades sírias, com vistas a enfraquecer grupos que combatem no sul da Síria, e fechou efetivamente a fronteira entre os dois países.
O próprio rei tem trabalhado muito em 'diplomacia por avião' com Rússia e China para ganhar relevância política e investimentos. Por tudo isso, se vê que a Jordânia está já bem posicionada para acompanhar o movimento dos seus vizinhos maiores, agora que o equilíbrio regional de poder já pende decisivamente a favor da Síria.
Os vitoriosos traçam o mapa do futuro, não os vencidos
A liberação de Aleppo Leste, que estava sob controle de milícias aliadas da Al-Qaeda, é ponto de virada decisivo na guerra contra a Síria. Todas as áreas de maior população e mais alta concentração de infraestrutura que definem o lado ocidental, de norte a sul do país, já estão quase integralmente sob controle do governo sírio.
Mais que isso, a libertação de Aleppo Leste serve como importante plataforma de lançamento com vistas a interromper o vital corredor Turquia-até-Mosul, pelo qual passaram, durante anos, suprimentos e armas para o ISIS. Soldados sírios e aliados poderão agora mover-se para leste da cidade até o Rio Eufrates, e cortar a linha de sobrevivência Turquia-ISIS.
Com as bases sírias no oeste protegidas e os militantes muito enfraquecidos no sul, só restam, como desafios, as áreas do noroeste – mas são áreas muito amplamente ocupadas pelo ISIS, onde se travará as batalhas finais para erradicar o grupo terrorista.
Assim sendo, o que exatamente os norte-americanos visam a obter com a divisão da Síria – e por quê?
Guerras recentes no Afeganistão, Iraque, Iêmen e Líbia demonstram claramente que uma autoridade central enfraquecida cria vácuos de poder que grupos extremistas sempre correm a preencher. O presidente eleito dos EUA Donald Trump disse que prefere homens fortes no governo, que a instabilidade que brota dos conflitos para 'mudança de regime'.
Qualquer divisão da Síria, portanto, beneficiaria em primeiro lugar o ISIS e a Al-Qaeda – e todos os lados do conflito sabem disso.
Os estados do Arco de Segurança e aliados podem competentemente erradicar o terrorismo de sua região. Mas Turquia e os EUA permanecem ainda como fatores de atrito permanente, os dois lados empenhados, contra os interesses de sua própria segurança, em reclamar para si fatias de território que têm alto valor estratégico.
Engraçado é que esses interesses jogam um contra o outro dois aliados da OTAN. O 'projeto curdo' dos EUA enviou Erdogan voando para o colo de iranianos e russos, pedindo socorro. É realmente irônico que esforços de tanto tempo, pelo ocidente, para semear discórdia entre atores, seitas e etnias regionais, possam agora ser revertidos num único passo, com o apoio dos EUA ao nacionalismo curdo. Nada mais garantido, para criar solidariedade e causa comum entre árabes, iranianos e turcos, que a possibilidade de criar-se estado curdo independente. Nem o ISIS faz tal coisa.
Depois da vitória em Aleppo, Assad novamente falou sobre Síria dividida: "É o que esperam os países ocidentais – e alguns regionais também... Se você observa a sociedade síria hoje, estamos mais unificados que antes da guerra. Não há o que faça os sírios aceitarmos tal coisa – falo sobre a vasta maioria dos sírios... Depois de quase seis anos, posso garantir que a maioria dos sírios aceitaria qualquer coisa que tenha a ver com desintegrar o país. É o contrário. Querem a Síria una, sem divisões."
E tem razão. Para mais de 70% dos sírios que vivem em áreas controladas pelo governo, a disposição para mais conflitos é zero – e dividir o país só significa isso: novos conflitos. Além do mais, não só os sírios, mas todo o Arco de Segurança e seus aliados globais estão hoje dedicados a proteger-se, destruindo o terrorismo que ainda reste em bolsões de território ocupado. Como Assad – e grande parte da Europa hoje – todos esses países sabem que você não erradicará a ameaça terrorista se não exterminar os terroristas e preservar o Estado.
Nesse contexto de segurança, dividir o país está fora de questão. No contexto militar, uma partição forçada exigiria o emprego de tropas mais fortes que os exércitos de Síria, Irã, Rússia, Iraque, Egito e Hezbollah combinados – e esse exército não existe. No contexto político, o apetite internacional para uma partição 'imposta' é nenhum.
Assim sendo, como se vê, não, a Síria não será dividida.
* Sharmine Narwani é comentarista
e analista de geopolítica do Oriente Médio. Foi professora no St. Antony's
College, Oxford University, com pós-graduação em Relações Internacionais na
Columbia University. Sharmine publica em longa lista de periódicos, dentre os
quais Al AkhbarEnglish, New York Times, Guardian, Asia
Times Online, Salon.com, USA Today, Huffington
Post,Al Jazeera English, BRICS Post e outros. No
Twitter, em @snarwani.
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