Como evitar uma guerra nuclear: Porque a estratégia de Kim Jong-un faz
sentido
texto de Federico Pieraccini, tradução de btpsilveira
Para observadores dos dois recentes testes de mísseis
intercontinentais pela Coreia do Norte, fica a impressão de que Pyongyang
deseja aumentar ainda mais as tensões na região. Porém, uma análise mais
cuidadosa mostra que a República Popular Democrática da Coreia (nome correto do
país) está dando curso a uma estratégia que pode vir a ter sucesso para evitar
uma desastrosa guerra na península.
Nas últimas quatro semanas a Coreia do Norte aparentemente já conseguiu
completar a segunda fase de sua estratégia contra a Coreia do Sul, Japão e
Estados Unidos. O programa nuclear norte coreano parece ter alcançado uma fase
importante, com dois testes levados a efeito no início e no final de julho.
Ambos os mísseis aparentam ser capazes de atingir o território (norte)americano,
embora ainda haja dúvidas da capacidade de Pyongyang para miniaturizar uma
bomba nuclear a ser montada em seu míssil balístico intercontinental (ICBM). Portanto,
a forma tomada pelo programa nuclear do país assegura uma estratégia de contenção
importante contra o Japão e a Coreia do Sul e até, em alguns aspectos, contra
os Estados Unidos, o qual permanece como a principal razão do desenvolvimento
de ICBMs pela Coreia do Norte. Há exemplos repetidos na história recente que
demonstram a insensatez de confiar no ocidente (o destino de Kaddafi ainda está
fresco em nossas memórias), e sugere ao invés disso a sabedoria da construção
de um arsenal que represente um alto nível dissuasivo contra a belicosidade daquele
país. Não é nenhum mistério que de 2009 até agora, a capacidade nuclear da
Coreia do Norte cresceu na proporção direta ao nível de desconfiança exibido
por Pyongyang em relação ao ocidente.
Desde 2009, com o encerramento das conversações a seis, Kim Jung-un
entendeu que as ameaças contínuas, treinamentos e vendas de armas dos Estados
unidos para Japão e Coreia do Sul precisavam ser bloqueadas de maneira a
preservar os interesses e a soberania da Coreia do Norte. Encarando uma
capacidade de gastos infinitamente menor que as três nações mencionadas,
Pyongyang escolheu uma estratégia bipartida: como medida explícita de
contenção, desenvolver um programa de armas nucleares; e fortalecer suas forças convencionais tendo em mente que Seul está à distância de
uma pedrada da artilharia norte coreana.
Esta estratégia bipartida trouxe, em pouco mais que oito anos,
um fortalecimento substancial na capacidade da Coreia do Norte de resistir às
tentativas de violações de sua soberania. Ao contrário da ideia normalmente
entregue pela imprensa ocidental, Pyongyang prometeu não ser a primeira a usar
armas nucleares, reservando-se o direito de usá-las somente como resposta a uma
agressão. Da mesma maneira um ataque preventivo contra Seul usando a artilharia
tradicional poderia ser visto como uma agressão intolerável, levando Pyongyang
a enfrentar uma guerra devastadora. A determinação de Kim Jong-un em
desenvolver contenção tradicional e nuclear resultou no estabelecimento de um
equilíbrio de poder que ajuda a evitar uma guerra regional e, sendo assim,
contribui para o fortalecimento da segurança de toda a região, ao contrário da
crença geral.
A razão pela qual os Estados Unidos continuam a aumentar a tensão
com Pyongyang e ameaçam um conflito não é a preocupação pela proteção de seus
aliados japoneses e sul coreanos como se pode ser levado a pensar. O objetivo
central dos Estados Unidos na região nada tem a ver com a preocupação com Kim
Jong-un e suas armas nucleares. Em vez disso, é direcionado por uma preocupação
perene com a necessidade de aumentar suas forças na região, por que quer manter
um equilíbrio de poder em termos de forças militares (Pivô para a Ásia) e
principalmente tentar conter o crescimento da República Popular da China. Poder-se-ia
mesmo argumentar que esta estratégia representa um perigo não apenas para toda
aquela região, mas no caso de um confronto entre Washington e Pequim, para o
planeta inteiro, dado o arsenal nuclear que possuem China e Estados Unidos.
Neste sentido, o relacionamento triangular entre China, Coreia
do Norte e Coreia do Sul toma um aspecto diferente. Como sempre, a cada ação
corresponde uma reação. A declaração de que Pequim preferiria se livrar da liderança
da Coreia do Norte não tem fundamento. O primordial para os políticos chineses é
que a ameaça das políticas de contenção dos EUA possa prejudicar o crescimento
econômico do país. Este posicionamento estratégico é bem conhecido em Pyongyang
e explica em parte porque a liderança da Coreia do Norte continua a tomar
atitudes que não são bem aceitas por Pequim. Do ponto de vista da norte
coreano, é vantajoso para Pequim compartilhar fronteiras com a Coreia do Norte,
que oferece uma liderança não hostil. Pyongyang está bem consciente do ônus político,
econômico e militar dessa situação, mas a tolera, recebendo os recursos
necessários de Pequim para sobreviver e desenvolver o país.
Este complexo relacionamento leva a Coreia do Norte a fazer
testes de mísseis na esperança de ganhar mais benefícios. Em primeiro lugar,
espera obter uma forte dissuasão regional e até mesmo global contra qualquer
ataque de surpresa. Em segundo lugar, isso força a Coreia do Sul a responder
simetricamente aos testes de mísseis da Coreia do Norte, e esta estratégia,
colocada em prática pela diplomacia da Coreia do Norte está longe de ser
improvisada ou incongruente. Nos anos recentes, a resposta da Coreia do Sul
veio na forma da instalação do sistema THAAD – Terminal High Altitude Area
Defense, destinado à interceptação de mísseis. Como repetidamente explicado,
esse sistema é inútil contra os foguetes de Pyongyang, mas representa uma séria
ameaça para o arsenal nuclear da China, desde que seus poderosos radares são
capazes de cobrir grande parte do território chinês, estando também
privilegiadamente posicionado para interceptar (ao menos em teoria) uma
resposta da China contra um ataque nuclear. Em resumo, o THAAD é uma ameaça mortal para a estratégica chinesa de paridade
nuclear.
Do ponto de vista das quatro nações envolvidas na região, cada
uma tem objetivos diferentes. Para os Estados Unidos, há muitas vantagens na
instalação do THAAD: aumenta a pressão contra a China, bem como conclui uma
venda de armamento, o que é sempre benvindo pelo complexo militar/industrial;
também dá a impressão geral de que o problema nuclear com a Coreia do Norte
está sendo tratado de maneira adequada.
A Coreia do Sul, no entanto, se encontra em uma situação
delicada, com o antigo presidente agora preso por corrupção. O novo presidente,
Moon Jae-in, deve preferir diálogo em vez da instalação de novas baterias
THAAD. Em todo caso, depois do último teste de mísseis ICBM, Moon requereu a
instalação de um sistema THAAD adicional na Coreia do Sul, que
seria acrescentado aos lançadores já instalados.
Sem opções disponíveis em particular para conduzir uma negociação
diplomática, Seul está seguindo Washington em uma espiral de escalação que
certamente não trará benefícios para o crescimento econômico da península. Em
última análise, enquanto a Coreia do Sul vê um crescimento do número de
lançadores THAAD no país, a Coreia do Norte está cada vez mais decidida em sua
determinação de perseguir uma dissuasão nuclear.
Na realidade, a estratégia de Pyongyang está funcionando: de um
lado, estão desenvolvendo um armamento nuclear para desencorajar inimigos
externos; por outro lado, estão obrigando a China a adotar uma atitude
particularmente hostil em relação à Coreia do Sul por causa da instalação do
sistema THAAD. Neste sentido, as numerosas medidas econômicas de Pequim contra Seul podem ser explicadas
como resposta à instalação das baterias do THAAD. A China é o principal
parceiro econômico da Coreia do Sul, e a limitação de seu comércio e turismo é
muito prejudicial para a economia de Seul.
Pelos últimos anos, esta tática está sendo usada por Pyongyang e
os resultados, além das recentes rusgas econômicas entre a República Popular da
China e a Coreia do Sul, levaram, embora indiretamente, ao fim do regime do líder corrupto Park
Geun-hye, que sempre foi um fantoche dócil nas mãos dos (norte)americanos. A
pressão que a Coreia do Norte aplica contra as relações bilaterais entre China
e Coreia do Sul cresce a cada lançamento de um míssil ICBM, o que é a lógica
por trás desses lançamentos de teste. Pyongyang sente que é correto pressionar
seu principal aliado, a China, a adotar ações contra Seul para força-la a um
compromisso de negociação diplomática com Pyongyang sem a presença prepotente
de seus aliados (norte)americanos sempre pressionando pela guerra.
O principal problema no relacionamento entre Coreia do Norte, do
Sul e China é a influência (norte)americana e sua necessidade de impedir uma
reaproximação entre estes países. Como dito antes, os Estados Unidos necessitam
da República Popular Democrática da Coreia para justificar sua presença na
região, visando na realidade a contenção dos chineses. Pyongyang tem sido
isolada e sancionada por quase 50 anos, porém ainda é capaz de assegurar a fronteira
sul da China como um amigo protetor ao invés de um inimigo. Essa situação, mais
que qualquer sanção que venha das Nações Unidas às quais a República Popular da
China possa aderir, garante um relacionamento duradouro entre os países. Pequim
está bem consciente do peso do isolacionismo e do fardo econômico suportado
pela Coreia do Norte, motivo pelo qual Pequim está aplicando pressão simétrica
contra a Coreia do Sul para negociar.
Nesta situação, os Estados Unidos tentam se manter relevantes na
disputa regional, enquanto não adquirem a capacidade de influenciar as decisões
chinesas que claramente contemplam outras táticas, especificamente o uso de
pressão sobre a Coreia do Sul. Como explicado antes, em termos militares
Washington não pode iniciar uma confrontação militar com a Coreia do Norte. As
consequências, além de milhões de mortes que aconteceriam, pode levar Seul a
cortar totalmente as relações com Washington e pedir um armistício imediato,
afastando os Estados Unidos das negociações e expulsando as tropas dos EUA de
seu território. Em última análise, o sul não tem capacidade de influir no
processo político nortista enquanto continuarem ao lado dos Estados Unidos em
termos belicosos (exercícios conjuntos realmente agressivos). Já a influência
que Washington tem sobre Pyongyang é zero, já tendo disparado todos os
cartuchos disponíveis em meio século de sanções.
Conclusão
A questão principal é que os Estados Unidos não se pode dar apo
luxo de atacar a República Popular Democrática da Coreia. Pyongyang continuará
a desenvolver seu programa de um arsenal nuclear, e Pequim continuará apoiando
encobertamente o regime, mesmo que oficialmente condene tais desenvolvimentos. Ao
mesmo tempo, a Coreia do Sul provavelmente continuará com uma atitude hostil, especialmente
em relação à instalação de novas baterias THAAD. Mais cedo ou mais tarde, Seul
chegará a um ponto de ruptura como resultado das sanções comerciais entre a
China e a Coreia do Sul. No entanto, enquanto Seul for capaz de absorver as sanções chinesas, pouco mudará.
O que poderá levar a
uma mudança de maior porte na região serão os efeitos econômicos que estas
restrições terão, o que pode fazer com que Seul reconsidere seu papel na região
e seu futuro. A liderança em Seul está consciente de três situações que
dificilmente mudarão, a saber: Pyongyang jamais atacará primeiro; Pequim
continuará a apoiar a Coreia do Norte como maneira de afastar os
(norte)americanos de suas fronteiras; Washington não é capaz de apresentar
soluções a não a criação de um enorme caos e uma piora global da situação
econômica da península. À luz deste cenário, o tempo corre a favor de Pequim e
Pyongyang. Eventualmente, a situação econômica pode se tornar insuportável para
Seul, levando-a à mesa de negociações, já em uma posição enfraquecida e
precária. Pequim e Pyongyang tem um objetivo comum no longo prazo, que é
quebrar os lações de submissão entre Coreia do Sul e Estados Unidos, livrando
Seul dos programas neoconservadores de Washington para conter a China (em um
modelo de contenção usado contra a Rússia).
O trabalho indiretamente coordenado entre Pequim e Pyongyang
dificilmente será compreendido pelos analistas ocidentais, mas ao examinar
todos os aspectos, especialmente aqueles que tem a ver com as relações de causa
e efeito, estas decisões se tornam não apenas compreensíveis mas até mais racionais
em uma visão ampla da região e seu equilíbrio de poder. Por outro lado, Seul
observa a Coreia do Norte oferecendo a paz, estabilidade e prosperidade com
base em um quadro de acordo entre Seul, Pyongyang e Pequim. Em particular, isso
pode também beneficiar o comércio com a China, retornando-se eventualmente à
normalidade de relações entre os países, com benefícios econômicos importantes.
A alternativa é uma aliança com Washington que eliminará
totalmente os benefícios econômicos de uma relação saudável com Pequim. Tal
situação pode eventualmente levar a uma guerra envolvendo milhões de mortes,
lutada em solo sul coreano e não nos Estados Unidos. Os Estados Unidos são
incapazes de oferecer quaisquer soluções para a Coreia do Sul, tanto no curto
quanto no longo prazo. A única coisa que Washington pode oferecer é uma
presença fixa no país, juntamente com uma política hostil à China que terá
consequências danosas sérias para Seul. Por paradoxal que possa parecer os
foguetes de Kim Jong-un representam uma ameaça menor que a presença e parceria
(norte)americana na região, e na realidade dão a Seul a oportunidade de
solucionar a crise na península de uma vez por todas.
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