Conectando o passado da China ao futuro da humanidade 


27/6/2020, Straight-Bat para o Saker Blog, Parte 1/3
Tradução pelo |Coletivo Vila Mandinga|
Parte 2 e Parte 3 (em tradução)

1. INTRODUÇÃO

O mundo cambaleia sob a onipresente Covid-19. Desde janeiro de 2020, os parâmetros econômicos e sociológicos entraram em colapso num país após outro, em todo o mundo. Até o final de 2020, quando se supõe que a pandemia de coronavírus talvez esteja sob controle em todos os 25 principais países (com PIB-PPP superior a 1 trilhão de dólares em 2018, conforme estimativas do Banco Mundial), o tecido econômico global já terá sido dilacerado por impactos jamais vistos contra as sociedades, dentre os quais:

·        milhões de doentes precisarão de cuidados médicos;
·        milhões de desempregados (número que não parará de crescer) precisarão de comida e abrigo;
·        pelo menos um terço das unidades médias e grandes de produção industrial e de serviços públicos sofrerão problemas financeiros, e cerca de metade das unidades de pequena escala serão fechadas para sempre;
·        devido ao declínio do poder de compra total entre os cidadãos, a demanda por produtos manufaturados diminuirá drasticamente, com o aumento simultâneo da demanda por medicamentos;
·        o sistema bancário estará sob enorme pressão para renegociar com seus clientes o pagamento ou o cancelamento de dívidas;
·        governos atingidos pela redução na arrecadação e pelo empobrecimentos em larga escala que acompanhariam o aumento da agitação entre as pessoas comuns.

Nas circunstâncias acima, qual seria o plano de ação da oligarquia global que detém coletivamente os setores bancário e industrial e que mantém a atual ordem mundial unipolar, servindo-se de membros escolhidos do chamado Estado Profundo (EUA/5Olhos/Israel)?

Temos de lembrar que não existe o tal ‘capitalismo nacional’. Dada sua característica de permanente expansão, o ‘capitalismo’ sempre teve perspectiva global, o que resultou em ‘sistema mundial’, com a sociedade industrialmente avançada formando o ‘centro’, e o resto do mundo, a ‘periferia’.

A oligarquia global tem interesse em TODOS os cantos do mundo. As elites do Estado Profundo [ing. Deep State] mantêm fortes alianças econômicas e políticas com quase todos os países, onde TODOS os partidos políticos importantes e grandes casas comerciais de todos os tons e cores são unidos por um conluio invisível, de modo a sempre estender o apoio que garantem; e para, em troca, beneficiarem-se da oligarquia global. (Cuba e Coréia do Norte são as exceções, devido às respectivas políticas aberta e ferozmente “independentes” de governança. E nas últimas duas décadas, os governos Rússia-China-Irã-Venezuela têm resistindo com entusiasmo à oligarquia global e aos parceiros locais daquela oligarquia.)

A resposta à pergunta acima é: a política e a implementação da política de Estado teriam de ser voltadas para a acumulação de capital em todos os países, exceto nos seis países mencionados acima. Além de receber quantias enormes como pacotes de resgate dos governos e compartilhar programas de recompra por meio de empréstimos com juros zero, a oligarquia (1% da população) e as elites fracassadas (5% a 15% da população) têm pouco interesse em governança e apoio assegurado a pessoas comuns em perigo.

Exame mais detalhado revela que, dentre os seis países do ‘campo de resistência’, só a China possui massa terrestre e população, que podem ser denominados ‘recursos’ necessários para resistir contra a ordem mundial unipolar, para reverter a marcha do capitalismo global e, simultaneamente, para construir uma ordem mundial multipolar e uma sociedade mais equitativa, em estreita coordenação com a Rússia. Assim sendo, é natural esperar que a China lidere o rejuvenescimento socioeconômico do mundo com total apoio da Rússia. A China também está bem posicionada para aproveitar os pontos fortes do Irã-Coréia do Norte-Cuba-Venezuela. Em nome de pessoas amantes da paz que acreditam em verdade-justiça-igualdade, permitam-me aprofundar essa ideia.

A jornada começará com a revisão da sociedade chinesa Qing, bem como da economia e indústria da era Qing; depois se discute a época comunista atual; para terminar na análise de possibilidades futuras. É sempre necessário olhar para trás, porque cabe esperar que sociedade com passado significativo também tenha futuro notável.

2. CHINA NA ERA QING

Sempre que se fala de três impérios sucessivos Yuan-Ming-Qing no final da China medieval e início da China moderna, esquece-se frequentemente que o Império Yuan foi dividido em duas partes: os impérios Ming e Yuan do Norte, e a maior parte das regiões abrangidas por esses dois impérios foi posta sob controle do Império Qing. Embora durante o ‘século da humilhação’ a partir de 1839 dC, o Império Qing tenha perdido gradualmente grandes territórios no nordeste, norte, noroeste e áreas menores no sul e no mar da China Meridional, o Império Qing merece atenção, pelos seguintes fatores:
1.      Não obstante o tratamento preferencial garantido aos aristocratas Manchus, os imperadores Qing transformaram o Império chinês em império multiétnico e multilíngue, na política e nos procedimentos oficiais (em contraste com a era Ming, que tinha visão chinesa Han). Com isso, os imperadores Qing criaram um dos fundamentos indispensáveis para a sociedade chinesa moderna. A partir de 1618, mediante a renúncia dos senhores Ming e a criação do reino Manchu pelo chefe tribal de Jurchen/Manchu, em 1648, a dinastia Qing formada pelo chefe tribal Jurchen/Manchu ampliou seu controle sobre a maior parte do antigo Império Ming mediante uma força militar na qual soldados Manchu eram menos de 20% da mão de obra, e soldados Han eram mais de 70%. Esses dados são bom exemplo do caráter multiétnico das políticas Qing.
2.     Os sucessivos imperadores Qing mantiveram relacionamento caloroso com todos os estados tributários e protetorados até o início do ‘século da humilhação’ em 1839. Comentaristas e acadêmicos que trazem à tona o conceito da Vestefália ao discutir a relação entre impérios/reinos na Ásia pré-colonial geralmente esquecem que a soberania Vestfaliana foi conceito necessário para, e derivado do ambiente “feudal” da Europa medieval e do início da Europa moderna. Exceto o Japão, as leis nos estados imperiais/reinos asiáticos nunca introduziram o ‘feudalismo’ na Ásia medieval e no início da Ásia moderna. Assim, a relação entre o Império Qing e diferentes categorias de vassalos teve vários vetores que não podem ser analisados sob lente Vestefaliana. Embora o Império Qing não tivesse carência de mão de obra ou de recursos militares que seriam necessários para governar diretamente os vassalos, estavam confortáveis com o sistema tributário (baseado nos ideais do confucionismo), segundo o qual diferentes reinos ao redor do Império chinês aceitavam o imperador chinês como autoridade predominante daquela parte do mundo, e o benevolente Império chinês garantiria a oportunidade de comércio e comércio pacíficos na Ásia Central, Oriental e Sudeste Asiático. – Isso garantiu a continuação de dois milênios de intercâmbio de bens-serviços-conhecimento-cultura entre Ásia e Europa.
3.     A continuação da entrada baseada no mérito, graças ao sistema de concursos públicos, para as instituições burocráticas, e à preeminência do sistema de valores confucionistas de família (ambos fatores adotados em dinastias anteriores) garantiu que a China Qing entrasse na era moderna, mantendo intacta a base sociopolítica fundamental da sociedade chinesa. Essas práticas chinesas antigas são valorizadas em todas as sociedades modernas, em todo o mundo.

No final do século XVIII, o Império Qing dominava área de cerca de 14 milhões de quilômetros quadrados, com população estimada em cerca de 300 milhões. A sociedade Qing foi dividida principalmente em cinco categorias:
·        Funcionários burocráticos;
·        Aristocracia de elite gentry;
·        Literatos, intelectuais;
·        “Plebeus” respeitáveis;
o   grupo ocupacional de agricultores;
o   grupo ocupacional de artesãos;
o   grupo ocupacional de comerciantes; e
·        Pessoas “más” degradadas (escravos, servos, prostitutas e outros profissionais do entretenimento, criminosos tatuados, funcionários de funcionários do governo de nível muito baixo).

Cerca de 80% da população total eram camponeses. Os camponeses proprietários de terras eram a maior força de trabalho, com presença de número insignificante de mão de obra contratada (sem terra). O Estado também recrutou, na população rural, quadros para o Exército.

Agricultura e uso da terra

O setor agrícola foi a maior fonte de emprego na sociedade chinesa. Com direitos de propriedade privada sobre a terra, os agricultores tiveram incentivo natural para produzir mais quantidade e variedade de colheitas – que resultou em maior produtividade. Os camponeses proprietários de terras também se beneficiaram da política estatal de apoio à contratação de trabalhadores. Por outro lado, os impostos da agricultura compunham a maior parcela da receita do Estado. Assim, o campesinato e o Estado fiscal-militar contavam com incentivos para a expansão territorial. E, frequentemente, o Estado reassentou os agricultores em novas regiões com estímulo material (sementes e ferramentas agrícolas) e financeiro (passagem livre e isenção de impostos).

No século XVIII, os “refugiados” Han do norte da China, que sofriam com secas e inundações, foram reassentados nas regiões da Manchúria e da Mongólia Interior. Os agricultores Han cultivavam cerca de 0,5 milhão de hectares de terras de propriedade privada das elites Manchu na Manchúria, e cerca de 200 mil hectares de terras incluídas em propriedades nobres da Corte.

Também houve outras ações inovadoras – introdução de milho e batata-doce, duplas culturas, fertilizantes (como bolos de feijão), reintrodução de arroz de amadurecimento rápido – que ajudaram a aumentar a produtividade e aceleraram a conversão de terras marginais em terras agrícolas regulares. Um sistema de monitoramento dos preços dos grãos ajudou os governantes a eliminar escassez severa, choques de preços e manipulação dos mercados.

Os agricultores, com base numa agricultura de alto rendimento, produziram considerável excedente constante, o que garantiu o desenvolvimento da economia de mercado na China (medieval e) do início da China moderna. Os historiadores estimam que até um terço da produção agrícola chinesa, depois de pagos os impostos, chegava ao mercado. Esse superávit também se tornou base do crescimento e desenvolvimento de outros setores da economia.

Comércio e Trocas

Pela primeira vez, alta porcentagem da agropecuária familiar começou a produzir colheitas para venda nos mercados locais e nacionais, não mais para consumo próprio ou troca na economia tradicional. As colheitas excedentes foram colocadas no mercado nacional para venda – o que, desde o início, integrou os agricultores na economia comercial. Isso naturalmente levou a regiões especializadas em determinadas culturas comerciais para exportação, à medida que a economia da China tornou-se cada vez mais dependente do comércio inter-regional de produtos básicos a granel, como algodão, grãos, feijão, óleos vegetais, produtos florestais, produtos de origem animal e fertilizantes.

A classe comerciante funcionava dentro dos limites impostos pelo Estado. No ápice da estrutura de mercado, o Estado controlava commodities importantes como sal, vinho, ferro e aço, etc. O Estado Qing recusou novos direitos de mineração a comerciantes privados. O comércio exterior do qual participavam comerciantes estatais e privados era controlado pelo Estado. Assim, a classe de comerciantes chineses ficou com uma plataforma irrestrita para se engajar em transações comerciais no nível das aldeias (intercâmbio de mercado excedente com os agricultores) e no nível da região (estima-se que houvesse entre 1.000 e 1.500 dessas regiões, no Império Qing). O comércio entre mercados em nível de vila, região e província transformou-se numa rede que cobria grande parte do Império Qing. Assim sendo, os mercadores tornaram-se classe muito rica, mas sem força (como classe) para influenciar a economia e a política do Estado.

Guildas mercantes proliferaram em todas as cidades em crescimento na China que consumiam itens manufaturados (por artesãos e plebeus) como têxteis, artesanato, cerâmica, seda, papel, papelaria, utensílios de cozinha. Uma administração mais eficiente do Grande Canal criou novas oportunidades para os comerciantes particulares que podiam facilmente transportar mercadorias dentro do Império Qing.

Estima-se que, no início do século XIX, até um terço do total de manufaturas do mundo tenham sido produzidas pela China. Em 1685 o Estado abriu o comércio marítimo para os comerciantes ao longo da costa, estabelecendo estâncias aduaneiras em cidades portuárias como Guangzhou, Xiamen e Ningbo. Mas devido a movimentos políticos internos, esse acordo comercial foi abandonado.

Quando o comércio marítimo foi novamente legalizado, o comércio com a Europa Ocidental cresceu a tal ponto, que só o Cantão abrigava mais de quarenta casas comerciais. A China importou principalmente cavalos de guerra (para o exército) e metais (para moeda); e exportou seda, cerâmica, têxtil, produtos de metal (feitos de ferro, cobre, bronze etc.), artesanato não metálico, chá. O comércio entre China e Europa cresceu a uma taxa média anual de 4% entre 1719 e 1806. O Estado Qing estabeleceu o Sistema de Cantão em 1756 dC, que restringia o comércio marítimo a Cantão-Guangzhou e dava direitos comerciais monopolistas a comerciantes privados chineses.

A British East India Company e a Dutch East India Company recebiam direitos de monopólio semelhantes por seus governos há muito tempo. No início da era moderna, a demanda na Europa por mercadorias chinesas era atendida pela importação, cujos pagamentos eram feitos em prata (proveniente das colônias das potências coloniais europeias no ocidente). O influxo de prata resultante expandiu a oferta de moeda, facilitando o crescimento de mercados competitivos e estáveis. Assim, a China mudou gradualmente para a prata como moeda-padrão para transações em grande escala e, no início do século 18, o imposto sobre a terra era pago em prata.

Dado que a China era autossuficiente em todos os tipos de bens de consumo, uma importação muito baixa causou desequilíbrio do comércio em relação à Europa, o que, por sua vez, resultou em as potências europeias perderem prata. A Companhia Britânica das Índias Orientais começou a importar ópio para a China – importações de ópio pagas por prata chinesa. Estima-se que entre 1821 e 1840, até um quinto da prata que circulava na China foi usada para comprar ópio. Alarmado com o excesso de prata e com os danos que o ópio estava causando ao povo chinês, o imperador ordenou o fim do comércio do ópio – decisão que desencadeou os conflitos de 1839 dC com as potências europeias.

Além dos sistemas de crédito de curto prazo, também estava presente a oferta de terras domésticas e agrícolas como garantia para levantar dinheiro de longo prazo. Porém, a interferência da comunidade e do Estado em tais contratos, bloqueando as transferências de terras de devedores para credores, foi um dos fatores significativos que explicam que o deslocamento e a desapropriação (base da acumulação primitiva ‘capitalista’) jamais se tenham enraizado na China.

Devido à meritocracia por oportunidades iguais e com mobilidade social, os jovens talentosos geralmente eram atraídos para o estrato de literatos e funcionários (a família ‘Pan’ de Anhui transformada, em dois séculos, de uma das famílias mais ricas de comerciantes, em poderosa família de burocratas). A classe dos comerciantes não era considerada suficientemente ‘suave’ para atrair pessoas talentosas. Eles não podiam rivalizar com a influência da grande aristocracia fundiária, apesar da influência localizada de comerciantes muito ricos. Em vez disso, o peso de fatores de mercado para a terra permitiu que os comerciantes se juntassem à classe de proprietários de terras.

Alguns comerciantes dedicados ao empreendedorismo migraram para os postos coloniais europeus como Manila, Macau e Jacarta, para evitar as políticas Confucionistas e atribuíam a comerciantes e outros plebeus o mesmo nível de tratamento que o Estado garantia aos patriarcas.

Serviços bancários desde muito cedo

As moedas de cobre eram usadas para transações diárias; a prata era usada para transações maiores, bem como para pagamento de impostos ao governo. Além da conversão monetária, os cambistas também forneciam crédito e serviços bancários rudimentares. Os bancos de remessas evoluíram durante esse período, que aceitavam depósitos em dinheiro do comerciante em um local e emitiam certificados de remessa, que o comerciante poderia levar para outro local para pagar seu fornecedor. Esse fornecedor, por sua vez, iria ao banco nas proximidades e trocaria o certificado, por moedas. No século XVIII, havia uma vasta rede desses bancos, que desempenhou um papel estelar no desenvolvimento da atividade comercial na China.

Desenvolvimento de cidades comerciais

Devido à comercialização dos excedentes de produtos agrícolas, bem como à crescente “indústria caseira” (digamos assim), os comerciantes estavam envolvidos em operações entre regiões e entre províncias, com a ajuda da rede de transporte de longa distância. As cidades surgiram como centros comerciais para direcionar o fluxo do comércio interno. À medida que mais e mais pessoas viajavam, “salas de guilda” surgiam nas cidades-mercado para acolher e hospedar pessoas, entre as quais comerciantes, compradores e vendedores. Supõe-se que se tenham desenvolvido cerca de 45 mil dessas cidades mercadológicas, algumas das quais se tornaram lar de alguns dos comerciantes.

Em meados do século XVII, foram introduzidas salas de guilda para fins mais específicos – para facilitar o artesanato e promover artesãos de setores específicos, como tecelagem, carpintaria, medicina, trabalho em ferro e aço. Assim, esses salões de guilda agiram como núcleo de cidades industriais, que se desenvolveram em grandes cidades com prédios, abastecimento de água, sistema de esgoto etc.

Semelhanças e diferenças em relação à Europa Ocidental

Na era Qing do século XVIII, os padrões de vida nas regiões sul e leste da China atingiram nível alto, comparável às regiões ricas da Europa Ocidental do século XIX. De acordo com historiadores e sinologistas, foram fatores-chaves para esse efeito: “(1) a racionalidade do crescimento ‘puxado’ por direitos de propriedade privada; (2) o crescimento do fator produtividade total, associado às revoluções verdes da China de Han a Ming-Qing e à revolução econômica da dinastia Song; e (3) capacidade de exportação da China (portanto, do excedente de produção da China) e importações de prata da China (daí o poder de compra do excedente de China)”.

Ken Pomeranz mostrou que as principais regiões produtivas da China e da Europa Ocidental enfrentavam ambos grandes estrangulamentos sob a forma de restrições de terra e de energia no século XIX. Uma combinação de fatores domésticos e internacionais, além de muita sorte, permitiu à Inglaterra ultrapassar estes desafios e embarcar num caminho de industrialização capital-intensiva. Segundo Pomeranz, dois fatores principais aqui foram: “(1) reservas de carvão convenientemente localizadas, que, próximas das áreas centrais, ajudaram a Grã-Bretanha a escapar mais facilmente às suas restrições no campo energético; e (2) a colonização coerciva pela Grã-Bretanha, no hemisfério ocidental, que serviu como fonte intensiva de produtos da terra, como algodão, açúcar e cereais, ao mesmo tempo que proporcionou um mercado para os seus bens manufaturados. Na China, onde as reservas de carvão não estavam tão prontamente disponíveis, e onde não havia política de colonização coerciva, que lhe pudesse proporcionar terras livres, os constrangimentos ecológicos levaram a uma virada para uma agricultura de mão de obra intensiva”.

Outra linha de pensamento considera que (1) famílias de “classe urbana e empresarial forte, capazes de concentrar o excedente agrário para promover um capitalismo industrial” estavam ausentes na China, diferentemente do Reino Unido; (2) nos setores da agricultura e da indústria caseira, a política de contenção de conflitos dos imperadores Qing (entre senhorio e inquilino, entre proprietário e mão de obra) incluía atitude agradável e acolhedora em relação a inquilinos e trabalhadores (muito diferente do Reino Unido, onde comerciantes, senhorios e empresários receberam do Estado apoio cego incondicional) – fatores que, afinal, foram prejudiciais à acumulação de capital.

Indicadores socioeconômicos

De acordo com Maddison, participação percentual do PIB global e do PIB per capita da China, Europa Ocidental e EUA

Conforme Allen e Pomeranz, selecionando indicadores socioeconômicos na China e na Inglaterra modernas

Observações significativas sobre a China Qing

1. Embora a sociedade chinesa tenha mantido robusta liderança sobre o resto do mundo em ciência e tecnologia (como demonstrado conclusivamente por Joseph Needham), incluindo metalurgia, porcelana, pólvora, bússola, seda, papel, blocos para impressão, turbina de água, fitoterápicos e muitos outros. Em outras áreas, a China demorou a acompanhar a tecnologia, em (a) máquinas industriais, (b) sistemas de transporte e (c) armas militares desenvolvidas na Europa Ocidental desde meados do século XVIII.

2. No final do século XVIII, quando a expansão territorial parou, a população manteve crescimento saudável. Devido à prática predominante de herança igualitária, os fazendeiros-proprietários começaram a enfrentar o problema do encolhimento da produção, que resultou em diminuição da prosperidade entre as classes de agricultores, o que finalmente se refletiu em arrecadação de impostos inferior à esperada pelo Estado chinês. A combinação de fatores-chave como (a) o hooliganismo-colonialismo organizado das empresas comerciais europeias; (b) descontentamento interno e rebelião entre as pessoas comuns; e (c) competição territorial com os Impérios russo e japonês, mostrou-se fatal depois de 1840 dC.

3. Com agricultura próspera e esplêndida indústria caseira que atendia às demandas domésticas, a China precisava importar principalmente cavalos e metais de guerra. Essa situação contrastava diretamente com os Estados da Europa Ocidental, que precisavam importar da China bens de consumo, mas não tinham a oferecer bens a serem exportados para manter algum equilíbrio no comércio. Então o ocidente trouxe o ópio.

A administração Qing certamente analisou com antecedência essa problemática relação comercial, pensando em impedir esses desenvolvimentos.

4. O debate entre grande número de historiadores e sinologistas sobre ‘por que a China não conseguiu desenvolver o capitalismo antes da Europa Ocidental’ continua até hoje.

Fato é que os freios e contrapesos socioeconômicos-políticos que existiam na China desde o primeiro milênio aC (em grande parte devido ao pensamento Confucionista generalizado no continente chinês mandarim, bem como ao pensamento Budista nas regiões dominadas da Mongólia e do Tibete) eram diametralmente opostos ao conceito do chamado “espírito animal” do capitalismo sionista. O rico senhorio e a classe de comerciantes na China nunca poderiam buscar lucro e acumulação infinita de capital mediante o controle sobre a superestrutura do Estado. No entanto, a sociedade chinesa dinâmica trabalhadora e baseada no mérito permitiu a comercialização, o comércio, a protoindustrialização e a urbanização em grande escala desde a era Song medieval.

3. CHINA NA ERA MAO

Desde meados do século XIX, ataque após ataque, desferidos pelas potências colonialistas da Europa Ocidental e pelos impérios russo e japonês devastaram a China: primeiro o Império Qing até 1911, depois a China Nacionalista até 1945. Superando o ‘século da humilhação’, pela luta armada e com alto custo em perda de vidas, o Partido Comunista Chinês tomou o poder do Estado na China continental em 1949.

Mao Zedong perdeu a esposa, um filho, dois irmãos e a irmã; Zhou Enlai perdeu todos os filhos; Zhu De encontrou a cabeça de sua esposa grávida, decapitada, pregada no portão da cidade.

Na época, a China era uma economia agrária atrasada, com pobreza generalizada, ilegalidade e analfabetismo; dos seus quinhentos milhões de habitantes, oito em cada dez eram analfabetos, um em cada oito era viciado em drogas. Era uma época em que os camponeses tinham que doar dois terços do que produziam como pagamento de aluguel e impostos; e as pessoas vendiam-se para evitar a fome.

Se se examina a China de 1949, causa o espanto mais desconcertante o modo como o Exército de Libertação do Povo completou sua tarefa de libertação, com Mao e seus camaradas, que culminou com a enfática tomada do poder do Estado pelo Partido Comunista Chinês. Nenhum outro líder revolucionário, em nenhum lugar do mundo até o momento, conseguiu mobilizar número tão vasto de compatriotas, enfrentando tantas e tais dificuldades, durante décadas.

Os atos iniciais foram rápidos e eficazes. O sistema bancário foi nacionalizado e o Banco Popular da China tornou-se o banco central do país. O governo restringiu o crédito, estabeleceu o valor da moeda, implementou orçamentos governamentais controlados centralmente. Tudo isso garantiu estrito controle sobre a inflação. O PCC empreendeu um programa de reforma agrária pelo qual 45% das terras aráveis foram redistribuídas para 65% das famílias camponesas que possuíam pouca ou nenhuma terra. Esses camponeses foram incentivados a formar equipes de ajuda mútua entre 7-8 famílias. O PCC também nacionalizou a maioria das unidades industriais, logo que chegou ao poder. Em 1952, 17% das unidades industriais estavam fora das empresas estatais, em comparação às cerca de 65% durante o governo do Kuomintang.

O Primeiro Plano Quinquenal (1953-1957) seguiu o modelo da União Soviética, que atribuía primazia ao desenvolvimento da indústria pesada. O governo da China controlava cerca de 67%, como empresas de propriedade mista estatal-privada. Não havia empresas privadas. Setores-chave como mineração de carvão e minério de ferro, geração de eletricidade, fabricação de máquinas pesadas, fabricação de ferro e aço, fabricação de cimento etc. foram modernizados, pela construção de centenas de novas fábricas com a ajuda de engenheiros enviados pela União Soviética. A produção industrial aumentou a uma taxa média de 19% ao ano durante esse período. Também durante esse período, mais de 90% das indústrias domésticas e artesanais foram organizadas em cooperativas.

O setor agrícola, no entanto, não apresentou desempenho conforme as expectativas e cresceu apenas a uma taxa média de 4% ao ano. A partir de ‘equipes de ajuda mútua’ precariamente organizadas, os camponeses eram incentivados a formar ‘cooperativas’, nas quais famílias individuais ainda recebiam alguma renda com base em sua contribuição em terra. No estágio seguinte, foram formados ‘coletivos’, nos quais a renda se baseava apenas na quantidade de trabalho com que cada família contribuía. Além disso, cada família foi autorizada a manter uma pequena área para cultivar legumes e frutas para consumo familiar. Em 1957, o processo de coletivização cobria 93% de todos os domicílios agrícolas.

O segundo plano quinquenal (1958-1962) foi abandonado. A liderança introduziu um novo conjunto de políticas e decidiu envolver toda a população para produzir um “grande salto” na produção para todos os setores da economia ao mesmo tempo. Comunas de três níveis foram construídas para liderar um salto quântico em produtos agrícolas – no nível superior, a administração central da comuna; no próximo nível, 20 ou mais brigadas de produção representadas pelos antigos ‘coletivos’; e no último nível, a produção de cerca de 30 famílias da vila.

Tentaram construir uma vasta rede de irrigação empregando agricultores desempregados e subempregados – o objetivo final era aumentar a produção agrícola e o emprego.

Da mesma forma, o trabalho rural excedente também foi empregado em milhares de pequenas empresas de baixa tecnologia, projetos industriais em áreas rurais – o objetivo final era melhorar a produção e o emprego industriais e agrícolas. Essa indústria de pequena escala (incluindo fornos de aço) também era administrada por comunas. As comunas provaram ser muito volumosas para desempenhar funções administrativas com eficiência. Como resultado da má administração econômica e do clima desfavorável por dois anos, a produção de alimentos em 1960 e 1961 caiu. Como resultado, a China enfrentou crise de fome – em 1960 a taxa de mortalidade foi de 2,54%, em comparação com a taxa média de 1,14% registrada em 1957 e 1958 .

Em 1958 o crescimento industrial foi de 55%; em 1961, de 38%. Em 1962, o colapso econômico geral levou a liderança a elaborar um novo conjunto de políticas econômicas. Os impostos agrícolas foram reduzidos, os suprimentos de fertilizantes químicos aumentaram, as máquinas agrícolas foram disponibilizadas, os preços de compra de produtos agrícolas aumentaram, o papel da administração central da comuna foi significativamente reduzido, e as parcelas agrícolas foram restauradas. Na indústria, o planejamento foi novamente enfatizado, foi iniciada a importação de máquinas estrangeiras tecnologicamente avançadas, as usinas hidrelétricas foram instaladas, as usinas antigas foram reformadas, as usinas de fertilizantes químicos e as agromáquinas foram montadas em grande número. Entre 1961 e 1966, o crescimento médio anual da produção industrial ultrapassou 10%, enquanto a produção agrícola cresceu a uma taxa média superior a 9% ao ano.

A Revolução Cultural foi levante político pelo qual Mao restabeleceu o controle sobre o partido, afastando as facções de direita e de centro do PCC. Não produziu grandes mudanças nas políticas econômicas oficiais ou no modelo econômico básico. No entanto, os distúrbios afetaram a sociedade urbana, com impacto de cerca de 14% de queda na produção industrial em 1967. Em 1969, o setor industrial retornou a uma taxa de crescimento normal.

O Quarto Plano Quinquenal (1971-1975) viu a retomada do crescimento econômico sistemático, especialmente no setor industrial (com novas instalações para exploração e refino de petróleo, fertilizantes, aço, materiais de construção, produtos químicos etc.). Petróleo e carvão foram exportados desde o início da década de 1970. Com a taxa média do setor industrial de 8% e a taxa média do setor agrícola de 3,8%, ficou claro que, ao contrário da imagem popular, a era Mao visava, como prioridade, ao crescimento industrial.

A liderança do PCC reavaliou a situação econômica e Zhou Enlai apresentou um relatório ao Quarto Congresso Nacional do Povo em janeiro de 1975. Ali formulou a famosa política das “quatro modernizações”: agricultura, indústria, defesa, ciência e tecnologia. Em 1976, quando Mao e Zhou partiram, já estavam construídas as bases para um país autossuficiente. A China continental tinha (1) força de trabalho muito grande e saudável, com educação básica; (2) vasto conjunto de empresas industriais em todos os setores; (3) infraestrutura, energia, comunicação necessárias para maior crescimento econômico; (4) economia sobre a qual a dívida externa era extremamente baixa (2,99% da renda nacional bruta em 1981).

Indicadores socioeconômicos

Exceto três interlúdios – o Grande Salto Adiante (1958-60), a Revolução Cultural Proletária (1966-69) e a luta política pós-Mao (1976-78) – diferentes setores da economia chinesa (agricultura, mineração, manufatura) experimentaram crescimento saudável, embora com considerável dificuldade despertada por mudanças frequentes nas políticas. Economistas estimam que, durante o período de 1952 a 1978, o PIB real per capita da China cresceu a uma robusta taxa média anual de 4%; a participação industrial do PIB aumentou de 20,9% em 1952, para 47,9% em 1978 (conforme o Bureau Nacional de Estatísticas da China); a produtividade da mão de obra industrial cresceu 236,7% e o crescimento da produtividade da mão de obra agrícola foi de apenas 25,5% no mesmo período; a fração da força de trabalho na agricultura caiu de 83%, para 75%; e o valor adicionado produzido na agricultura caiu de 78% em 1953, para 30% em 1977; o consumo das famílias cresceu apenas 2,3% ao ano; os preços de varejo para bens de consumo cresceram à taxa média de 0,6% ao ano. A expectativa de vida ao nascer cresceu de 43,5 anos em 1960, para 66,5 anos em 1978, segundo dados do Banco Mundial.

Observações significativas sobre a china de Mao

1. Pelo mesmo caminho que a União Soviética seguiu, de 1949 em diante, a China passou a implementar um modo de produção que era essencialmente “capitalismo de Estado”. A União Soviética como Estado era proprietária dos meios de produção e da “mercadoria” (que por definição está integrada com o valor de troca, ou seja, o “preço” no “mercado”) que eram produzidos. Seguindo um modelo semelhante, a China criou uma nova economia que também girava em torno da produção de mercadorias pelas empresas estatais, da produção agrícola pelas comunas estatais e da acumulação de capital pelo Estado (mediante a extração de excedentes da agricultura rural e da indústria leve). Na União Soviética e na China, os ideólogos chamaram a isso “mercadoria socialista”, embora o “socialismo” não possa, por teoria, acomodar a produção de “mercadoria”, que se refere inerentemente ao “mercado”.

De fato, como sugere o marxismo, os conceitos de “mercadoria”, “mercado”, “capital” e “capital excedente” estão intrinsecamente ligados à “propriedade” dos meios de produção. Marx e Engels foram claros: esses conceitos não têm lugar na sociedade socialista / comunista. Não é verdade que a propriedade pertença apenas a cidadãos ‘privados’: mesmo o ‘Estado’ pode possuir ativos para serem usados como ‘capital’ e os lucros das empresas são apropriados pela autoridade do Estado e por seguidores próximos. Sem dúvida, Stalin e Mao, sendo os seguidores mais comprometidos da filosofia e da ideologia de Marx-Engels-Lenin, estavam bem cientes do destino final da jornada marxista. Por que, então, eles se propuseram a acumular capital nos tesouros do Estado? Voltaremos a esta questão novamente na última parte dessa dissertação, na seção 5.

2. O sistema de planejamento central adotado inicialmente pela União Soviética foi saco de pancada para os líderes do PCC sempre que revisavam os resultados planejados versus os alcançados e encontravam variações (os resultados reais eram inferiores ao planejado). O planejamento econômico centralizado como conceito estava correto – havia deficiências no processo de execução. Em primeiro lugar, deveria ter sido feita uma priorização setorial que refletisse a realidade da sociedade – a sociedade chinesa é predominantemente agrária; o 1º Plano Quinquenal deveria ter atribuído importância primária à agricultura e nível próximo de importância à indústria leve, ficando as máquinas pesadas no último degrau de importância. Em segundo lugar, o planejamento econômico centralizado exige informações precisas e conjunto de dados completo.

A China é um país vasto, com grandes diferenças regionais em clima, recursos naturais, normas sociais, demografia, ocupação, infraestrutura etc. A compilação de dados completos e corretos e de dados para o processo de planejamento, há 70 anos, era muito mais complexa do que podemos imaginar hoje.

Terceiro, na realidade, o planejamento central era um processo de cima para baixo, embora com a participação de todos os ministérios e departamentos envolvidos. Em um país grande como a China, melhor abordagem teria sido de baixo para cima.

3. O governo introduziu o sistema hukou (originário da China medieval) em 1958, mediante o qual todas as famílias rurais foram registradas, registro que deu aos membros da família direito a moradia, educação e assistência médica no local de nascimento registrado. De certa forma, o governo controlou a migração da população rural para regiões urbanas e semiurbanas. Os intelectuais que valorizam os direitos humanos como direito natural inalienável, descreveram esse sistema como draconiano. No entanto, esses arranjos foram altamente eficazes no controle da migração em larga escala de pessoas rurais desempregadas para áreas urbanas, o que causava problemas socioeconômicos nas áreas rurais e urbanas.

4. O espírito revolucionário de Mao não tinha limites. Indubitavelmente, Mao acertava ao enfatizar que: (a) não apenas a esfera econômica do capitalismo precisa ser transformada para o socialismo, mas a esfera cultural da sociedade também exige essa transformação; (b) a revolução proletária ainda tem um longo caminho a percorrer. Repetidas vezes Mao perdeu a paciência com políticas desenvolvidas inicialmente por ele e sua equipe. Mao talvez considerasse, talvez não, que mudanças frequentes na política econômica deixariam um rastro de ineficiência. Durante a segunda metade da década de 1950, a rejeição decisiva das realizações de Stalin, pelo PCUS; o desprestígios dos ideais leninistas; e a retirada de todos os tipos de apoio da China aos soviéticos levaram Mao a perceber em profundidade os desafios gerais no caminho da construção do socialismo em um só país. – Esse fator, só ele, pode explicar a vacilação de Mao em questões políticas e deliberações aprofundadas sobre aspectos socioculturais da revolução socialista (território muito menos percorrido por Lênin e Stálin). Assim, Mao mergulhou em muitos fatores intangíveis (além da economia política) que influenciariam o resultado final de uma transformação comunista completa de qualquer sociedade.

4. CHINA NA ERA DENG

Após uma breve luta pela liderança, Deng Xiaoping assumiu o controle do PCC em 1978. Na Terceira Sessão Plenária do 11º Comitê Central do PCC, realizada em dezembro de 1978 em Pequim, os líderes do partido majoritário decidiram empreender reformas e abrir a economia. E repudiaram a era da Revolução Cultural de Mao. A reforma, como propunha Deng, desenvolveria forças produtivas mediante o aumento do papel dos mecanismos de mercado e da redução do papel do planejamento do governo.

A produção agrícola foi estimulada por um aumento de mais de 22% nos preços pagos aos camponeses pelos produtos agrícolas. O sistema de comuna foi descoletivizado, mas o Estado ainda possuía a terra; e o sistema da responsabilidade doméstica foi introduzido na agricultura a partir de 1979 – famílias de agricultores teriam ‘direito de uso’ em lotes de terra (divididos das antigas ‘comunas’) do governo, e obteriam lucro da venda de seus produtos no mercado, em vez de oferecer pequena quantidade contratada de produtos para o Estado, como impostos. Esse arranjo aumentou a produtividade por meio dos incentivos de lucro para os agricultores, e cerca de 98% dos domicílios agrícolas foram incluídos nesse sistema em 1984. Em 1985, empregando 63% da força de trabalho do país, o setor agrícola alcançou 33% do PIB; a produção aumentou cerca de 25%. Entre os produtos agrícolas, grãos como arroz, trigo, milho, cevada, milheto, culturas comerciais como sementes oleaginosas, cana-de-açúcar, algodão, juta, frutas, verduras, aves e porcos foram produzidos principalmente por famílias camponesas. Embora a eficiência do setor agrícola tenha melhorado muito, com todas as parcelas aráveis produzindo pelo menos uma safra por ano e, sob condições favoráveis, duas ou três safras anuais, os problemas fundamentais permaneceram como antes – fazendas pequenas e equipamento agrícola inadequado.

Além de uma categoria significativa de pequenas indústrias artesanais / caseiras, as indústrias leves formaram a segunda categoria. As grandes indústrias incluíam usinas de energia, refinarias de petróleo, petroquímicas, químicas, fertilizantes, têxteis, têxteis, aço, cimento e automóveis.

Reformas direcionadas às regiões industriais urbanas

Nos setores industriais, as indústrias estatais receberam permissão para vender no mercado a produção acima da ‘cota planejada’, a preços praticados no mercado, bem como licença para experimentar os bônus, como recompensa para maior produtividade entre os funcionários. O Sistema de Responsabilidade Industrial introduzido em meados da década de 1980 permitiu que indivíduos ou grupos administrassem a empresa estatal firmando contrato com o governo. As empresas privadas (que quase desapareceram após a Revolução Cultural) foram autorizadas a operar, e foi introduzida a flexibilidade de preços. Gradualmente as empresas privadas passaram a compor uma porcentagem maior da produção industrial.

Trazendo um processo moderno de gerenciamento de negócios corporativos, o governo permitiu que os gerentes ganhassem controle sobre suas operações comerciais, incluindo recrutamento e demissão (com aprovação de burocratas e do PCC).

O setor industrial gerou cerca de 46% do PIB em 1985, empregando apenas cerca de 17% da força de trabalho total na China. As empresas receberam mais incentivo quando, em 1985, foi aplicada em toda a China a política de retenção, pela empresa, do lucro líquido (após o pagamento ao governo, do imposto sobre o lucro).

No setor bancário e financeiro, também houve mudanças nas políticas – empréstimos bancários foram disponibilizados às empresas com juros muito baixos, que teriam de ser devolvidos aos bancos. O apoio orçamentário do governo foi reduzido. Para as indústrias, os procedimentos de comércio exterior foram muito mais fáceis (em breve seriam lançadas zonas econômicas especiais para estar na vanguarda do boom do comércio exterior). Por efeito do ambiente competitivo com fins lucrativos sobre as pessoas da classe trabalhadora, muitas empresas substituíram lentamente o emprego permanente pelo emprego contratual de curto prazo, além de eliminarem os pacotes de assistência social para os trabalhadores. Isso afetou negativamente o padrão de vida e a segurança social dos trabalhadores industriais.

Talvez a decisão política mais abrangente tomada por Deng esteja relacionada à política de portas abertas para investimentos estrangeiros. A partir de janeiro de 1979, o governo chinês criou cinco Zonas Econômicas Especiais (ZEE) iniciais, em Shantou, Shenzhen, Zhuhai (na província de Guangdong), Xiamen (na província de Fujian) e na província de Hainan, onde muitas infraestruturas adicionais, incentivos fiscais e liberdade de muitos regulamentos burocráticos foram fornecidos a investidores estrangeiros para a criação da indústria. Principalmente voltadas para a exportação de mercadorias, as cinco ZEE abrigavam joint ventures estrangeiras com empresas chinesas e também com empresas de propriedade integralmente estrangeira. Em 1984, a China abriu 14 cidades costeiras para investimento nas empresas multinacionais: Dalian (província de Liaoning), Qinhuangdao (província de Hebei), Tianjin, Yantai, Qingdao (ambas na província de Shandong), Lianyungang, Nantong (ambas na província de Jiangsu), Xangai, Ningbo, Wenzhou (ambos na província de Zhejiang), Fuzhou (província de Fujian), Guangzhou, Zhanjiang (na província de Guangdong) e Beihai (na província de Guangxi). A partir de 1985, novas zonas econômicas foram estabelecidas na península de Liaodong, província de Hebei, península de Shandong, delta do rio Yangtze, delta do rio Pearl, Xiamen-Zhangzhou-Quanzhou na província de Fujian, no sul, e na região autônoma de Guangxi Zhuang.

Na era pós-Deng, essas regiões tornaram-se motores de alta potência de crescimento econômico e avanços tecnológicos para a economia chinesa. Xiamen-Zhangzhou-Quanzhou, na província de Fujian, no sul, e região autônoma de Guangxi Zhuang.

A política de portas abertas mudou o panorama do comércio externo na China. Antes das reformas, as exportações-importações combinadas em 1969 representavam 15% do PIB; com as reformas em 1984, tornaram-se cerca de 20%; e em 1986 atingiram 35% do PIB. Têxteis, petróleo e produtos alimentares eram os principais bens de exportação; maquinaria, equipamento de transporte e produtos químicos eram os principais produtos de importação. Em 1986, o Japão tornou-se o parceiro comercial dominante, representando 28,9% das importações e 15,2% das exportações.

Durante o mesmo período, os EUA apareceram no horizonte como o terceiro maior parceiro comercial global, ao lado apenas de Hong Kong que representava 13% das importações e 31,6% das exportações. Sob Deng, a ZEE e o comércio externo tornaram-se ferramentas significativas tanto para o investimento direto estrangeiro (IDE) como para a tecnologia moderna.

A parte mais interessante do impulso industrial da China foi a “transferência de tecnologia”. Embora historicamente a China estivesse sempre na vanguarda da ciência e tecnologia aplicadas, ao final do século XVIII a China estava ficando para trás na corrida tecnológica, em comparação com a Europa Ocidental. Daí que Deng tenha feito notar que, na sequência do programa de “quatro modernizações”, a China teria de superar rapidamente o fosso tecnológico mediante a modernização de antigas instalações mineiras e industriais, além de criar instalações sofisticadas.

Grande número de centrais térmicas alimentadas a carvão e grandes projetos hidroelétricos foram empreendidos pelo governo para gerar energia elétrica necessária a uma economia industrial próspera.


Sem dúvida, o programa geral de reformas de Deng alcançou sucesso impressionante, mas também gerou vários problemas socioeconômicos sérios: ascensão de facções ligadas à economia política neoliberal de livre mercado dentro do PCC; autonomia gerencial em empresas estatais e privadas; corrupção desenfreada; crimes econômicos; disparidades crescentes de renda; inflação descontrolada; e deterioração moral em larga escala.

Essas preocupações criaram uma tempestade no PCC, e o secretário-geral do partido Hu Yaobang foi forçado a renunciar em 1987. A facção de centro-esquerda do PCC paralisou alguns dos programas de reforma. Líderes estudantis baseados principalmente em Pequim e Xangai, fascinados pela ideologia neoliberal do livre mercado, apontaram essas questões socioeconômicas na sociedade chinesa da época e construíram um movimento (apoiado pelo Estado Profundo capitalista sionista) que visava a derrubar o governo do PCC. O Exército de Libertação do Povo foi mobilizado para acabar com os protestos estudantis na Praça Tiananmen, em Pequim, em junho de 1989.

Em novembro e dezembro de 1990, Deng reabriu a Bolsa de Valores de Xangai e estabeleceu a Bolsa de Valores de Shenzhen. O Congresso do Partido, em 1992, ecoou as opiniões de Deng, afirmando que a principal tarefa da China seria criar uma “economia socialista de mercado”. E, em 1992, Deng realizou a “excursão ao sul”, durante a qual destacou a necessidade de continuar as reformas para abrir a economia. Através dessas ações, Deng restabeleceu o controle sobre o partido (que foi enfraquecido após os protestos na Praça da Paz Celestial), afastando as fações de extrema esquerda e esquerda do centro do PCC. Deng fez de Jiang Zemin o novo líder do PCC.

Começa nova rodada de reformas de mercado

Empresas privadas e empresas pertencentes aos governos locais aproveitaram empréstimos fáceis de bancos estatais para expandir seus negócios. Isso causou novamente inflação e déficit fiscal durante o ano de 1993. A nova política de taxa de câmbio flutuante e conversibilidade para o renminbi provocou cerca de 33% de desvalorização do renminbi. O investimento direto estrangeiro foi ainda mais incentivado e choveram capitais na China. A economia esfriou depois que as empresas pertencentes aos governos locais transferiram parcela maior da receita para o governo central, e os créditos bancários foram apertados.

As exportações subiram devido à desvalorização. Em 1996, a economia cresceu em torno de 9,5%, acompanhada de baixa inflação. As exportações subiram devido à desvalorização.

Trabalhando na política de livre comércio e zona econômica após 1990, o governo abriu a nova área de Pudong em Xangai e as cidades no delta do rio Yangtze para investimentos do exterior; e a partir de 1992, outras cidades fronteiriças e capitais de províncias e regiões autônomas também foram abertas a investimentos estrangeiros.

O número total de empresas industriais aumentou de 377.300 em 1980, para quase 8 milhões em 1990. Durante a era Deng, níveis mais altos de inflação apareceram com controles governamentais reduzidos – em 1980 os preços ao consumidor aumentaram 7,5%, enquanto em 1985 o aumento foi de 11,9%, caindo para 7,6% em 1986. Em 1995, a China exportou US $ 24,7 bilhões para os EUA e 149 bilhões para o resto do mundo. Em 1997, ano em que Deng partiu, a participação do consumo privado no PIB era de apenas 43%, e as exportações respondiam por 22% do PIB.

Novos indicadores socioeconômicos

Os economistas John Whalley e Xiliang Zhao estimaram o desempenho impressionante da economia chinesa (usando a abordagem de Barro-Lee) entre 1978 e 1999:
·        Taxa de crescimento do produto – 9,72%
·        Taxa de crescimento do insumo
·        capital físico – 7,30%
·        trabalho – 2,03%
·        capital humano (representado pela média de anos de estudo) – 2,81%
·        Taxa de crescimento na produtividade total dos fatores (PTF) – 3,64%
·        Contribuição para o crescimento do PIB
·        capital físico – 36,35%
·        mão de obra – 10,78%
·        capital humano – 14,95%
·        PTF – 37,93%

PIB da China dos anos 1980, 1990 e 1997

Observações significativas sobre a China de Deng

1. O 14º Congresso Nacional do Partido Comunista, realizado em 1992, não apenas apoiou o contínuo esforço de Deng por reformas de mercado, mas aceitou que a China estava a caminho de criar uma “economia socialista de mercado”. Essa foi a expressão oficial do PCC para documentar seu esforço de reforma usando as forças do mercado. Duvido que essa terminologia existisse na China pré-Deng ou na União Soviética antes de Gorbachev.

Mais uma vez, como a teoria marxista propunha, o socialismo seria uma antítese à economia orientada para o mercado, impulsionada pelo modo de produção capitalista. Na sociedade capitalista, o “fator de produção” seria proveniente de “mercado” e as mercadorias seriam vendidas no “mercado”. Na linguagem socialista, o conceito de mercado não deveria existir, independentemente de o conceito ser proposto por qualquer facção dentro do partido comunista: ‘esquerda’, ‘direita’ ou ‘centro’. Foi, principalmente, a incapacidade da liderança do então PCC para reorganizar e galvanizar a economia rural e urbana para liberar as forças produtivas; em vez disso, entraram na “economia de mercado”, que era o motor das versões “mercantil”-”agrária”-“industrial” do capitalismo que se enraizou nas sociedades da Europa Ocidental desde o século XVI.

2. Deng foi o grande arquiteto do que pode ser chamado de “juggernaut chinês para exportação”. A reforma de mercado da China foi realizada muito mais tarde em comparação ao Japão e outros tigres asiáticos. A partir da década de 1980, o exportador tardio fez um trabalho esplêndido ao absorver uma enorme quantidade de investimentos e a mais recente tecnologia de fabricação. Os padrões de vida urbana relativamente estagnados e a queda dos padrões de vida rural resultaram na transferência maciça de mão de obra rural para o crescente setor de exportação. Além disso, as empresas estatais já possuíam força de trabalho disciplinada, educada e qualificada, o que facilitou a entrada de grandes multinacionais no mercado chinês – gigantes como Boeing e Toyota iniciaram seus negócios na China mediante a colaboração com empresas estatais chinesas dos respectivos setores de aeronaves ou automóveis. Esse ambiente foi outro legado da era Mao.

A atratividade da China para o capital global foi ainda mais aprimorada pelo persistentemente baixo nível de salário dos trabalhadores em comparação com outros países asiáticos como Japão, Cingapura, bem como pela pressão competitiva entre as províncias locais, que competiram entre si para alcançar um alto crescimento do PIB, oferecendo condições favoráveis possíveis para investidores estrangeiros (variando de incentivos fiscais a terras industriais livres).

A China construiu a maior economia dependente de exportação do mundo nos anos 2000. Diferente do Japão e de outros tigres asiáticos, que construíram com base em empresas privadas, o governo chinês dependia dos dois tipos de empresas: de empresas estatais e empresas privadas para fabricar e exporte uma incrível variedade de bens de consumo para todos os cantos do mundo. Deng previu esse boom econômico que proporcionou a necessária elevação do padrão de vida de milhões de chineses instruídos. No entanto, a economia chinesa não pôde evitar as dificuldades econômicas de curto prazo desencadeadas por reformas tão rápidas para impulsionar a economia orientada para a exportação.

3. Longe de ser um seguidor do pensamento político capitalista liberal, Deng sempre foi socialista comprometido, diferente nisso de muitos líderes da União Soviética naquele momento.

Os pesquisadores devem lembrar que, para Deng, ‘economia de mercado’ era ‘um método de usar gato preto para pegar ratos em vez de usar um gato vermelho’, e o desenvolvimento de capacidades na China seguiria a política ‘esconda sua força, espere seu tempo’. Na minha opinião, Deng nunca teve qualquer dúvida sobre o resultado final da visão marxista de que a história final será escrita pela sociedade comunista sem classes. Daí seu conselho de que se construísse força.

Quando autorizou o envio de forças do Exército do Povo para remover à força o aluno que protestava na Praça da Paz Celestial em 1989, Deng via com clareza que a liderança dos estudantes que protestavam eram ideólogos capitalistas liberais, interessados em derrubar o regime do PCC na China, servindo-se do descontentamento entre as pessoas com corrupção-inflação-nepotismo. Se Deng e a maioria das outras altas lideranças chinesas tivessem por um instante acreditado em uma letra, que fosse, da filosofia capitalista liberal, palavras como “socialismo”, “comunismo”, “marxismo” teriam sido completamente apagadas até da história escrita da civilização, já em 1991.
(Continua)


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