Há como evitar a escalada do conflito armado na Líbia?

Texto de Valery Kulikov, com tradução de btpsilveira


Dado o número de personagens envolvidos, muitos observadores concordam que o conflito líbio está chegando ao clímax, um ponto sem retorno que equivaleria à travessia do Rubicão.


Atualmente as tensões crescem na Líbia, e não só na linha de frente, onde os centros de poder a leste e oeste do país se enfrentam, mas também dentro do Governo do Acordo Nacional (GNA, na sigla em inglês – NT). Lançam-se acusações dentro do GNA de que quase todo o poder está sendo açambarcado pelo ministro do interior Fathi Bashagha, acusado de agir apenas no próprio interesse ou no de grupos islâmicos armados de Misrata, contra as milícias em Trípoli. Como consequência, certo número de líderes da milícia de Trípoli ameaça lançar seus lutadores contra Fathi Bashagha.

Fathi Bashagha é conhecido como um dos principais construtores da aliança política e militar entre a Turquia e o GNA. Manejou pra trazer o presidente Donald Trump para o lado do GNA através de suas ligações com o Departamento de Estado, o Pentágono e agências de inteligência (norte)americanas, cortejando os Estados Unidos com tudo, desde bases militares em solo líbio até acordos lucrativos de petróleo e gás. Não se admira que esteja agora apostando todas as suas fichas na assistência que espera receber de Ancara, Estados Unidos e OTAN.

Ocorre que Fathi também é conhecido por ter conexões com grupos extremistas islâmicos, notadamente as Brigadas Islâmicas al-Farouq (Kata’ib al-Farouq al-islamiya, KFI), a Força do Escudo Líbio e a Irmandade Muçulmana, todos listados como terroristas ilegais por diversos países. Apelidado de Cardeal Cinzento pela preferência de manejar os acontecimentos a partir dos bastidores, Bashagha carrega consigo uma longa lista de acusações públicas de crimes de guerra, e estas acusações vêm não só de seus inimigos do lado simpático a Haftar, mas também de seus próprios colegas do GNA.

Ao mesmo tempo, a luta continuada que grassa entre as duas partes foi financiada primariamente pelo exterior. Na fronteira do país a leste, o Egito é o país que desempenha papel mais ativo, demonstrando apoio total para o Exército Nacional Líbio (LNA, na sigla em inglês – NT) liderado pelo General Khalifa Haftar, que controla totalmente a Líbia Oriental, e toda a fronteira com o Egito. O Cairo pode dar ajuda ilimitada para o LNA através de suas fronteiras, incluindo assistência do exército do Egito, o qual é uma das forças armadas mais poderosas do mundo em termos de número de combatentes e o volume de equipamento que detém. As forças Armadas do Egito têm poder suficiente para derrotar o Conselho Nacional de Transição da Líbia (CNT[L], na sigla em inglês – NT), em questão de dias, mesmo sem ajuda da LNA – tudo o que precisa é a autorização de Haftar para entrar em território líbio. O Egito já recebeu consentimento oficial do parlamento líbio baseado na região oriental do país, bem como a aprovação do parlamento egípcio, o que permite ao Cairo o lançamento de uma intervenção militar a qualquer momento.

Claro que seria muito benéfica para o Cairo uma intervenção total do Egito na crise da Líbia, já que ofereceria condições para que tomasse conta das enormes reservas líbias de petróleo e gás, os quais são recursos muito importantes para o Egito, que poderia explorá-los tanto para consumo doméstico quanto para exportação. Mas o Egito certamente também está de olho no maior sistema mundial de irrigação (o Grande Rio Feito pelo Homem – imenso projeto de irrigação tubular que, a partir de aquíferos subterrâneos, leva água para fazendas na Líbia – NT) criado sob Gaddafi que ajudaria o país a aliviar seus problemas atuais com o abastecimento nacional de água, em parte causados pela represa Grand Ethiopian Renaissance (em fase final de construção na Etiópia – NT) no Nilo Azul.

Quanto à possível reação internacional que o Cairo pode sofrer se lançar esse tipo de blitzkrieg, não é provável que venha a causar problemas graves para o Egito, especialmente levando-se em consideração o criticismo crescente da França contra a Turquia pelo apoio desta ao GNA, e ainda o apoio israelense para o LNA, também apoiado pelas monarquias do Oriente Médio (com exceção do Catar). Mesmo em Washington o criticismo contra a Turquia tem alcançado altos níveis em vários fronts nos últimos meses. Entre as admoestações, está uma lei submetida ao Congresso dos Estados unidos para sancionar a Turquia pela compra do sistema de mísseis russo S-400, o apoio crescente de Washington para o Egito e Emirados Árabes Unidos, a cooperação com o Partido dos Trabalhados do Curdistão (PKK) no Iraque apesar do conflito dessa organização com a Turquia e a vontade de Washington de impedir as ações e Ancara no Mediterrâneo oriental e na própria Líbia.

Já existe uma guerra sendo travada entre o Egito e a Turquia na Líbia atualmente, mas a guerra está mascarada na luta entre o NTC e o LNA, e ainda muito limitada em escala. Percebe-se que a única coisa que ainda segura o Cairo antes de se lançar para a fase de conflito armado aberto é apenas a preocupação de que uma guerra contra a Turquia pode disparar uma declaração de guerra pela OTAN. No entanto, mesmo que um conflito aberto aconteça, hoje é improvável que a OTAN ofereça apoio real para a Turquia, especialmente considerando-se que a aliança permanece silente em resposta ao conflito ocorrido recentemente entre França e Turquia, ambos membros da OTAN na costa da Líbia, quando uma fragata francesa sob comando da OTAN tentou inspecionar um navio de carga suspeito de estar contrabandeando armas para o país, e que estava sendo escoltado por navios de guerra turcos. Na realidade, Washington, a OTAN e a União Europeia estão a cada dia mais eloquentes em suas reclamações com Ancara.

Entretanto, a comunidade internacional está bem consciente do perigo representado pelo conflito líbio e pelo impasse entre Egito e Turquia que pode progredir para a fase militar. Assim, vários países recentemente tomaram as medidas necessárias para resolver o assunto, organizando uma série de negociações. Diplomatas de diferentes países estão tentando encontrar compromissos que assegurem um cessar-fogo na Líbia.

Em 22 de julho uma comissão interdepartamental dos ministros de relações externas e de defesa da Rússia encontraram seus pares para dois dias de conversações em Ancara sobre a situação na Líbia, e devem ter uma nova rodada de consultas em breve. As partes concordaram em manter pressão contínua sobre os participantes do conflito líbio para criar condições para um cessar-fogo sustentável e duradouro, e resolveram ainda promover diálogos na Líbia sob auspícios das Nações Unidas. Também anuíram em considerar o estabelecimento em breve de um grupo de trabalho para resolver a crise da Líbia.

Sergey Lavrov, Ministro de Relações Externas russo, detalhou a atitude de Moscou para com os participantes do conflito militar na Líbia – o Governo do Acordo Nacional (GNA) e o Exército Nacional da Líbia (LNA) liderado pelo Marechal de Campo Khalif Haftar. Lavrov disse que Moscou mantém contato com ambas as partes, acrescentando que as conclusões da Conferência de Berlin sobre a Líbia permanecem relevantes, e o objetivo final de todos os esforços deve ser assegurar um acordo para a Líbia que restaure a soberania do país.

Abdelmadjid Tebboune, presidente da Algéria, expressou sua oposição à intervenção militar no conflito líbio, afirmando em entrevista para a mídia local que armar as tribos líbias deve levar à “Somalização” da situação na Líbia. Destacou que a Algéria não aprova quaisquer ações unilaterais na Líbia, declarando que não interferirá no conflito. Em 19 de julho o Representante Especial Adjunto do Secretário Geral para Questões Políticas dentro da Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia (UNSMIL) na Líbia, Stephanie Willians visitou a Algéria. Em 22 de julho, o Ministro de Relações Externas algeriano, Sabri Boukadoum voou para Moscou onde entrou em conversações com seu par Sergey Lavrov, quando afirmou que “não existe solução militar” para o conflito na Líbia.

Em 22 de julho, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump e o Príncipe Coroado de Abu Dhabi Mohammed bin Zayed Al Nahyan, se encontraram para discutir questões de segurança regional e a situação na Líbia, quanto asseveraram a “importância de desescalar o conflito na Líbia através da remoção de forças estrangeiras”.

A União Europeia exortou os vizinhos da Líbia para acabar com a interferência externa, e pediu um retorno ao processo de acordo liderado pelas Nações Unidas. O presidente francês Emmanuel Macron anunciou que estão sendo preparadas sanções contra os países envolvidos no conflito.

Agora só resta esperar que as medidas tomadas pela comunidade internacional possa prevenir o incremento do conflito na Líbia.


Valery Kulikov é especialista em Ciências Políticas.

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