Retribuindo favores –
estilo Erdogan
Com os olhos do mundo focados na COVID-19 e o colapso econômico
iminente, ativismo da Black Lives Matter (BLM) e os protestos grassando nos EUA
e outros países ocidentais, pouca atenção se dá ao crescimento de um
fundamentalismo religioso que serviu de base para o Estado Islâmico, mas é
ainda mais perigoso que este: todas as pistas
apontam para o que ocorre atualmente na Turquia.
A Al-Qaeda e o Estado islâmico são/foram organizações abandidadas com
recursos relativamente escassos, capacidade reduzida e sem reputação
internacional que pudesse lhes proporcionar um refúgio seguro que lhes
ocultasse e protegesse da ira do mundo, por assim dizer.
Não é o caso dos sauditas nas últimas décadas. A Arábia Saudita é
entidade política reconhecida internacionalmente, membro das Nações Unidas e do
G-20, com recursos econômicos enormes e uma commodity que o mundo necessita: o
petróleo. Usa o poder de seus dólares para espalhar a versão fundamentalista
Wahhabi do Islã, baseada nas interpretações e ensinamentos de Ibn Taymiyyah.
Os sauditas gastam bilhões, dezenas de bilhões, talvez até centenas de
bilhões de dólares para construir escolas religiosas e mesquitas pelo mundo
inteiro. Financiam, incentivam e protegem pregadores, entre eles alguns dos
mais controversos e violentos pregadores radicais para promover sua versão do
Islã. Financiaram e equiparam os grupos terroristas mais fundamentalistas, por todo
o espectro, começando com os Mujahidin afegãos; Al-Shabab somali; Boko Haram
nigeriano, apenas para citar alguns. Sua programação começou no final dos anos
1960, durante o reinado do rei Faisal que, inicialmente, queria erradicar a
doutrina marxista, então em crescimento no mundo muçulmano.
Quando acharam que já tinham conseguido, que haviam pavimentado a
estrada e removido os obstáculos, lançaram seu ataque multibilionário contra a
Síria.
Na época, a juventude fundamentalista muçulmana sunita do mundo inteiro
apostava na liderança saudita e colocava toda a sua fé e esperança neles para
liderar o mundo muçulmano em direção a uma nova era na qual o islamismo Wahhabi
conseguiria uma série de vitórias na arena global, com intenção sub-reptícia de
controlar o mundo todo.
Quando os sauditas começaram a fracassar no cumprimento de suas
promessas, o Estado Islâmico surgiu e marcou presença na mente da juventude
muçulmana, a partir do momento que a mídia começou a colocar no ar vídeos de
tanques do EI nas ruas de muitos quarteirões de Mosul, segunda maior cidade do
Iraque. Logo antes da queda de Mosul, o avanço do EI parecia inexorável;
reminiscência dos anos dourados de conquista e glória do mundo Islâmico, ou
pelo menos era assim que muitos jovens muçulmanos simpáticos ao movimento viam
os acontecimentos.
Não foi surpresa nenhuma que quando o líder do Estado Islâmico o
autodenominado Califa Abu Bakr Al-Baghdadi convocou uma Jihad em 2013, ele não
mirava apenas do setor fundamentalista sunita já radicalizado, mas também
manobrou para iludir outros sunitas então moderados que se encontravam
encantados com suas conquistas.
Não se pode esquecer aqui que até onde tenha a ver com as batalhas
religiosas e conquistas muçulmanas, talvez a última grande vitória no
hemisfério ocidental foi a conquista otomana de Constantinopla em 1453. Mas o
sucesso conseguido pelo Sultão Otomano Mehmet II foi resultado de enorme
esforço, planejamento estratégico, determinação, paciência, perseverança e a
capacidade de empregar o que havia de melhor no mundo em desenvolvimento de
armamentos, especialmente a manufatura de canhões.
Com o fracasso saudita na Síria e sua incapacidade crassa de conseguir
uma vitória no Iêmen, mesmo com todas as vantagens de sua posição privilegiada,
a Arábia Saudita começou a perder estatura como nação líder no fundamentalismo
muçulmano.
Entra Erdogan.
Como tenho exposto muitas vezes anteriormente, Erdogan é um amálgama de
fanatismo religioso fundamentalista e nacionalismo turco. Tem suas próprias
agendas egocêntricas, aspirando tornar-se um mega líder muçulmano e construtor
de impérios. Na sua busca pela liderança, assumiu o papel de oportunista,
chantagista e carniceiro, entre outras coisinhas.
Como oportunista que é, aproveitou-se do movimento anti-Síria e
transitou pelas conversações entre Catar e Arábia Saudita. Eles o cobriram de
dinheiro e promessas. Erdogan abriu suas fronteiras com a Síria para os
terroristas que eles financiaram.
Mais tarde, usou os refugiados sírios na Turquia para chantagear a União
Europeia, abrindo as comportas dos refugiados e exigindo suborno para manter os
portões fechados depois de receber o preço do resgate. Os subornos foram
exigidos principalmente da Alemanha, cortesia de falta de visão e sabedoria de
Angela Merkel.
Como um carniceiro, está capitalizando sobre os investimentos feitos
pelos sauditas, em seu próprio benefício.
Erdogan prometeu para apoiadores em 2011 que rezaria na Mesquita Omayyad
em Damasco depois de derrotar o presidente sírio Assad, mas falhou. Prometeu ao
povo turco que teria “zero problemas” interna e externamente. Ele fracassou.
Esperava forçar a Rússia a aceitar seus termos antes da reunião de 15 de março
de 2020, e também foi malsucedido. Agora espera ardentemente conseguir uma
vitória na Líbia, mas nitidamente está falhando mais uma vez.
Acontece que ele não consegue entender que mordeu mais do que pode
mastigar, e mesmo assim pretende imiscuir-se no Azerbaijão.
Ele está desesperado por uma vitória. Não há melhor troféu para exibir
do que fazer o equivalente à conquista de Constantinopla pelo Sultão Mehmet II.
Talvez duas vezes.
A grande diferença é que antes da queda de Constantinopla, ela era a
capital do Império Bizantino e sua queda foi resultado de uma derrota militar
nas mãos dos otomanos. Entretanto, por incrível que pareça, a máquina de
propaganda de Erdogan está pintando a mudança de status de Hagia Sophia de
museu para mesquita como grande conquista. Seus apoiadores cantam slogans pelas
ruas afirmando que tornar Hagia Sophia uma mesquita é equivalente à vitória
prevista no Hádice (ensinamentos, normatizações, profecias, feitos e lendas
sobre a vida do Profeta Maomé. Conforme a seita muçulmana [sunitas, xiitas,
wahhabis, sufistas, etc.], a composição e aceitação do Hádice pode variar –
NT).
Algo está errado. Ou os apoiadores de Erdogan não sabem que
Constantinopla/Istambul já esteve sob domínio muçulmano/turco por mais de cinco
séculos, ou sequer entendem o que quer dizer a palavra “conquista” ou não se
importam e só querem perdurar mais algumas medalhas em Erdogan roubando as
vitórias de terceiros.
A razão verdadeira pode ser mais sinistra. Erdogan não foi capaz de atingir nenhuma
vitória militar decisiva nas suas apostas, daí ele decidiu capitalizar o
trabalho de seus antecessores. O Sultão otomano Mehmet II tomou Constantinopla
depois de uma longa jornada de planejamento estratégico, mas Erdogan pensa que
pode exumar os vestígios remanescentes de glórias passadas e se cobrir com os
farrapos de slogans de feitos históricos chamando-os de seus, retomando um
ícone que na verdade já estava sob seu controle, só para poder dizer
petulantemente que é um vencedor. Sequer precisou lutar uma batalha para provar
que é valoroso. Escolheu convenientemente usar a caneta e... voilà!
Transformou-se instantaneamente em grande conquistador muçulmano. Para dizer
pouco, isso é o pior tipo de plágio histórico.
Essencialmente, Erdogan manipulou (photoshopped,
no original em inglês – NT) um triunfo com base em realidade virtual inventada,
reclamando para si mesmo a conquista de Hagia Sophia, apenas para ganhar mais
apoio dos fundamentalistas sunitas nas ruas. Bem. Pelo menos dos menos
racionais.
Resumindo, Erdogan não só se beneficiou do trabalho desenvolvido pelos
sauditas Wahhabi, aos quais, aliás, ele se opõe como homem da Irmandade
Muçulmana, como, através da facilidade que tem de manipular as mentes
vulneráveis da juventude muçulmana, acabou por usar todo o dinheiro
inadvertidamente usado pelos sauditas como um esquema de pagamento em benefício
próprio para tentar elevar-se à condição de líder na hierarquia do mundo
muçulmano.
Até agora, essa é única área em que Erdogan tem tido sucesso: manipular
essas mentes vulneráveis tanto em casa quanto no mundo muçulmano mais extenso.
Porque a diferença no peso internacional entre Al-Qaeda/EI e a liderança
de Erdogan é ainda maior que a dessas organizações em relação à intocável
Arábia Saudita. A Turquia não só é um Estado, Membro das Nações Unidas, membro
do G-20, mas também é membro da OTAN e tem um exército forte.
Diferente dos sauditas que não tem histórico de planejamento
estratégico, capacidade tecnológica e conquistas empresariais a não ser através
de pagamento de estrangeiros para construir seus palácios, a Turquia pode
desempenhar papel mais pernicioso, afinal, é uma nação que tem longa história
como força imperial; e se e quando a Turquia resolver optar pelo crescimento
fundamentalista, é melhor o mundo prestar atenção.
Com a mente no acima exposto e sabendo muito bem que o ocidente não tratará
a Turquia como se fosse Bora Tora (região de uma batalha entre EUA e milícias
afegãs e o Talibã, que ficou conhecida como a Batalha de Bora Tora – NT),
Erdogan sente-se livre para converter cada vez mais o sistema de escolas
públicas em um sistema de escolas fundamentalistas, mas de acordo com o vídeo de
propaganda de Erdogan com legendas em árabe, destinados a conseguir apoio do
mundo árabe sunita, ele indica que está construindo o futuro exército para a
Umma (‘Umma’ é um termo árabe que quer dizer “nação”, mas atualmente designa a
união de todos os muçulmanos na mesma fé, nos mesmos propósitos e pela crença
em Maomé, nos profetas, nos anjos, no juízo final, etc. – NT) através da
radicalização dos jovens, pelas escolas reformuladas. O vídeo no YouTube foi
removido, mas aqui pode ser vista uma captura de tela dele.
Em artigo publicado há quase dois anos no jornal New York Times o plano de Erdogan de mudar o sistema educacional do
país foi apresentado. Escolas públicas são sistematicamente substituídas pelas
escolas Imam Hatip, onde o próprio Erdogan se formou. Mesmo que essas escolas
tenham matérias regulares, cerca de 50% delas são religiosas, e um estudante
tem que eliminá-las antes que posse se formar. Com essa abordagem, Erdogan pode
na realidade estar liderando a Turquia para se tornar não só um Estado
Teológico, mas também uma nação que não terá tecnocratas e formados STEM
suficientes em uma época em que ele está tentando erguer um império e um
exército sofisticado. O que também é digno de nota é que os pais seculares e
ricos mandarão suas crianças para escolas particulares e não religiosas, e
formarão a maioria da nova geração de doutores, engenheiros e professores.
Em vídeo de propaganda, um ruidoso e espalhafatoso apoiador de Erdogan
declara aos berros que quem foi capaz de uma vitória sobre Hagia Sophia fará o
mesmo com as mesquitas de Jerusalém, Córdoba (na Espanha), Iêmen, Meca e
Medina.
Falando em termos globais, o maior perigo representado por Erdogan é que
ele entende tanto as mentes dos fundamentalistas muçulmanos quanto a dos
ocidentais liberais, mas o ocidente não tem a mesma compreensão abrangente,
para seu risco, diga-se. Até que ele seja impedido ou caia por méritos próprios,
ele vê o mundo como uma estrada aberta para espalhar seu fundamentalismo e suas
aventuras expansionistas, porque a sua mente está firmemente encravada em uma
era muçulmana de conquistas e glória religiosa.
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