O isolamento político dos EUA tem raízes na posição europeia


Angela Merkel, Chanceler alemã
Texto de Salman Rafi Sheikh, tradução de btpsilveira


A dominação global pelos Estados Unidos já chegou a um fim. O fato se torna cada vez mais evidente pela maneira que o mundo, particularmente antigos aliados dos EUA na Europa (em inglês) e Ásia estão cada vez mais se inclinando em direção à China deixando os Estados Unidos sozinhos em sua “guerra comercial” (em inglês) com esta última.


Por esta razão, a “guerra comercial” dos EUA com a China provavelmente não se tornará uma “Guerra Fria” nos moldes daquela que o mundo viu entre os EUA e a União Soviética. Embora seja isso o que os Estados Unidos deseja, uma resistência generalizada entre países determinantes contra as tentativas dos EUA em dividir o mundo entre dois blocos ou forçá-los a seguir as pegadas dos (norte)americanos vis-a-vis assuntos cruciais, tais como o programa nuclear iraniano ou o acordo com o mesmo país quebrado unilateralmente pelos Estados Unidos e que afetam políticas globais mostram que mudanças de grande magnitude estão acontecendo e os Estados Unidos não as conseguem impedir.

A maioria das reuniões recentes do UNSC (Conselho de Segurança das Nações Unidas, na sigla em inglês – NT) relacionadas aos embargos ao Irã ilustra a influência declinante dos EUA em termos de sua habilidade de impor decisões unilaterais. Para a administração Trump, esse declínio também significa um grande fracasso de sua política de “pressão máxima” contra a República Islâmica, para impor enormes sanções contra o Irã e forçar sua economia a desmoronar.

Essa política foi tratada com frieza tanto pelos tradicionais inimigos dos Estados Unidos – Rússia e China – quanto pelos novos inimigos – Alemanha e França. Particularmente, essa sessão viu um debate onde a Alemanha não apenas culpou Washington pela violação e um tratado internacional do qual se retirou unilateralmente, como também corroborou a reclamação chinesa de que os Estados Unidos não tem o direito de reimpor sanções contra o Irã. Vassily Nebenzia, embaixador da Rússia para as Nações Unidas foi particularmente sarcástico ao comparar as sanções impostas ao Irã pelos EUA à morte de George Floyd, dizendo que era a mesma atitude de “pressionar o pescoço de alguém com o joelho”.

Embora que as relações dos EUA com Rússia e China permaneçam ruins por razões óbvias, são seus aliados na Europa que não apenas começaram a sentir a necessidade imperativa de reafirmar sua independência política, mas também começaram a entender que o rei “está nu”. Seu desprezo cada vez maior por e a política para afastar-se dos Estados Unidos tem raízes profundas na percepção da maneira pela qual o mundo está mudando. A partir de um mundo bipolar dos velhos tempos da Guerra Fria quando a Europa era fraca e tinha que confiar na força dos EUA, o mundo se moveu rapidamente de um sistema unilateral depois da Guerra Fria para um mundo multipolar atual, onde a Europa não apenas não é mais tão fraca e nem depende tanto dos Estados Unidos, como pode ser considerada um dos polos de um mundo que se torna cada vez mais multipolar, onde o continente quer e deve decidir sobre as questões de acordo com seus próprios interesses.

O fato torna-se evidente pela forma que a Europa adota suas políticas em face de Rússia e China, onde embora a Europa tenha adotado política de abertura significativa para a China, continua a se opor ao retorno da Rússia ao G7. Ao mesmo tempo, a Alemanha, diferente dos Estados Unidos, não vê qualquer problema na finalização do projeto Nord Stream-2 com a Rússia. Da mesma forma, enquanto se opõe à “guerra comercial” com a China, a União Europeia aguarda ansiosamente um acordo de investimento de longo prazo com a China. Com a Alemanha assumindo a presidência da União Europeia no mês que vem, Merkel, que está sendo vista como cada vez mais inclinada ao multilateralismo, estará dando atenção especial ao encontro UE/China em Leipzig, que acontecerá no outono.

Em outras palavras, com os Estados Unidos e a União Europeia vendo o mundo de maneira radicalmente diferente, não é mais coisa impensável a eclosão de uma pequena “Guerra Fria” no interior da aliança transatlântica.

Embora possa se imaginar que as diferenças entre União Europeia e Estados Unidos venham a acabar com eventual derrota de Trump nas eleições de 2020 e que a vitória de Biden poderia trazer de voltas os dias da era Obama, representantes europeus, citados pela mídia ocidental, estão cada vez mais alertas contra esse tipo de pensamento simplório, asseverando que não há garantia de que em quatro anos Biden não venha a ser substituído por alguém ainda “mais radical que Trump”. Para a Europa, no entanto, a mudança de rumo em direção à China não é mero efeito da administração Trump; trata-se de como – e quando – o continente quer se posicionar no mundo multipolar atual.

Por outro lado, se Trump vencer as eleições em 2020, essa guerra fria menor pode se intensificar. Ele já mira a Europa como o seu próximo “alvo da guerra comercial”. De fato, é dessa forma, que Trump pensa em “punir” a Europa pela sua tentativa de ser assertiva diplomaticamente com as posições em relação ao Irã, China e até Rússia e o G7. Nos últimos meses Trump tem falado constantemente tarifas de 25% sobre carros feitos na Europa. Consequentemente, caso Trump realmente imponha tarifas contra a Europa, existe um sentimento de que o cálculo político europeu pode mudar radicalmente, forçando uma economia equivalente à dos EUA a retaliar, o que levaria ao engajamento numa “guerra comercial ampliada”.

Com certeza isso também terá consequências para a OTAN; ocorre que o conflito bilateral será em grande parte institucionalizado, deixando de ser mero “choque de personalidades”. Na realidade, em grande parte, na Europa essa institucionalização já acontece e as eleições nos EUA terão pouco impacto na forma pela qual – e até onde – a Europa se posicionará no mundo multipolar. Em outras palavras, mesmo que Biden tenha sucesso, sua vitória terá virtualmente pouco impacto seja na marcha decidida do mundo em direção à multipolaridade, seja na forma pela qual a Europa reagirá aos fatos.


Salman Rafi Sheikh, analista/pesquisador de Relações Internacionais e questões domésticas e exteriores do Paquistão.


Comentários

Postagens mais visitadas