19/3/2017, Pepe Escobar, SputnikNews Tradução do Coletivo da VILA VUDU
Vocês todos lembram bem do
que a ex-secretária de Estado dos EUA Condi Rice previu em 2006 em matéria de
"dores do parto de um novo Oriente Médio". Fiel ao regime de George
"Dábliu" Bush/Cheney, Condi errou tudo, fragorosa e espetacularmente,
não só sobre o Líbano e Israel, mas também sobre Iraque, Síria e a Casa de
Saud.
O governo Obama
aplicadamente manteve uma tradição que se pode chamar sem medo de errar de
Escola Sex Pistols de Política Exterior ("no future for you" [não há futuro para você]). Ela está
perfeitamente exposta pela imbatível porta-voz do Ministério de Relações
Exteriores da Rússia Maria Zakharova, em poucas e
precisas palavras.
Zakharova chama a atenção para a
evidência de que a Equipe Obama só bateu cabeça: "Um dia, bombardeamos
tudo; dia seguinte, nada de bombas; mais um dia, retiram-se da Síria; dia
seguinte, invadimos a Síria; um dia derrubamos o governo; dia seguinte, nos
acertamos com ele, para 'ação conjunta'. Essas flutuações aconteceram mês após
mês... Um lado do governo não compreende o que o outro lado faz." E no
fim, "concentraram-se em Aleppo, mas não para resolver alguma coisa, só
para inflar o mais possível a histeria e uma campanha de (des)informação
orientada exclusivamente para as eleições."
E isso nos leva na direção dos adultos na sala na era Trump, os que estão
realmente monitorando as dores do parto do verdadeiro novo Oriente Médio: a
Rússia.
Aquela base iraniana em Latakia
Comecemos pela recente visita que o primeiro-ministro de Israel Bibi Netanyahu
fez ao presidente Putin.
Bibi chegou a Moscou inflado de pensamento bíblico desejante,
essencialmente para tentar seduzir Putin, levá-lo a pôr de lado a parceria
estratégica com o Irã e – para completar, puxá-lo para a gangue muito
propagandeada da coalizão anti-Irã e antixiitas chamada "OTAN árabe"
liderada pelos EUA pela retaguarda, na qual se vê Israel na cama com um bando
de petromonarquias do CCG e associados menores (Jordânia e Marrocos).
Bibi está desesperado porque o Irã, com fatos em campo (combatentes iranianos e
o Hezbollah) em parceria com fatos no céu (aviação russa), está realmente
vencendo a guerra por procuração que se trava na Síria, por Damasco. E aconteça
o que acontecer depois das negociações de Astana, Teerã se manterá firmemente
plantada na Síria – para ultraje ultrabalístico do combo OTAN-CCG-Israel.
Implicação paralela é que Israel não pode mais atacar o sul do Líbano. Mês
passado, em Teerã, tive a confirmação de que o Hezbollah tem hoje mais de 40
mil combatentes estacionados e/ou monitorando um labirinto de instalações
subterrâneas, prontos para defender o Líbano contra qualquer coisa que o
ameace; é força mais de dez vezes superior à que havia em 2006, quando da
tentativa de invasão da qual Israel foi forçado a uma retirada humilhante.]
Nada há que Bibi possa oferecer a Putin – além de promessa vaga, sem
substância, de que ordenará ao poderoso lobby israelense ativo em Washington
que suavize a demonização ensandecida, histérica, 24 horas/dia, sete dias por
semana, contra a Rússia.
Ao mesmo tempo, há notícias de que o presidente Bashar al-Assad da
Síria deu luz verde para a construção de uma base naval iraniana em Latakia,
próxima da base aérea Hmeymim
usada pelas Forças Aeroespaciais da Rússia. Aconteceu depois que Mohammad
Bagheri, Comandante do Estado-maior das Forças do Irã, fez saber que a Marinha
do Irã logo precisaria de bases na Síria e no Iêmen.
Teerã enviou à Síria, principalmente, conselheiros e instrutores militares; mas
o Corpo de Guardas Revolucionários Islâmicos [ing. Islamic Revolutionary Guard Corps (IRGC)]
também contribuiu com soldados altamente treinados e combatentes experientes.
Em Teerã, tive o prazer de conhecer o major-general Mohammad Ali Jafari,
comandante geral do IRGC e supremo organizador/especialista
em táticas para guerra assimétrica, com vasta experiência adquirida durante a
guerra Irã-Iraque e nos sucessos do Hezbollah no Líbano em 2006.
Equivale a conhecer pessoalmente o comandante do Marine Corps, general Joseph
Dunford, comandante do Estado-maior dos EUA –, mas sem a encenação, a pompa e a
circunstância. Homem cortês, Jafari não teve tempo para entrar em detalhes, mas
outras fontes confirmaram que, sem o seu profundo conhecimento das reais
circunstâncias dos combates, Damasco estaria hoje provavelmente em situação
dificílima.
O que a Rússia quer na Síria
Aqui, uma entrevista com o vice-ministro de Relações Exteriores
da Rússia Mikhail Bogdanov, ex-embaixador em Telavive e no Cairo, hoje também
representante especial do presidente Putin no Oriente Médio e o qual,
metaforicamente, reabriu as águas do Mar Vermelho.
Bogdanov ofereceu aos públicos árabes um guia conciso para compreender a
política da Rússia para o Oriente Médio – absolutamente o oposto da estúpida
demência neoconservadora das 'mudanças de regime' dos EUA.
Comparou as "dezenas de milhares" de mercenários jihadistas
salafistas em guerra contra Damasco e a presença militar russo-iraniana
oficialmente requisitada pelo "governo legítimo". Descartou a noção
pervertida de que o Irã estaria exportando a revolução islamista (que se
aplicava no início dos anos 1980s). Destacou que Moscou quer uma espécie de entente cordiale EUA-Irã – com (pouco provável) a Casa
de Saud no mesmo pacote. As negociações podem acontecer em Moscou ou noutro
local.
O Kremlin, nas palavras de Bogdanov, quer uma Síria secular, que ultrapassa os
sectarismos e que brote de eleições livres e justas supervisionadas pela ONU.
Como se poderia prever, as palavras dele quase nem disfarçavam a exasperação
que gera em Moscou a obsessão de Washington com manter Teerã fora das
negociações de paz na Síria. E descartou firmemente a ideia de os "rebeldes
moderados", cujo único objetivo é "Assad tem de sair", serem
levados a julgamento em Haia ("Se o objetivo for esse, a guerra pode durar
para sempre").
E no final, o gancho de suspense para 'os próximos capítulos': "A
Rússia opera sob o princípio da legitimidade internacional. Estamos
comprometidos com o princípio da não interferência nos assuntos internos de
qualquer país, incluindo a não interferência nos assuntos internos do nosso
país. Respeitamos o processo democrático. Não respeitamos revoluções
coloridas."
Membros da Equipe Trump
talvez cultivem a noção loucamente desejante segundo a qual Moscou barraria
Teerã – não só na Síria, mas também em termos de integração da Eurásia. Sem
chance. E avisem lá a Casa de Saud.
A Casa de Saud gastou fortunas investindo numa mudança de regime na Síria, que
seria provocada pela ação de jihadistas salafistas; e numa guerra contra o
Iêmen que os sauditas jamais conseguirão vencer, guerreada com armas
norte-americanas, que já gerou fome em massa. Moscou talvez consiga, com o
tempo, instilar algum senso geopolítico em Riad? Mais uma vez: sem chance.
Porque a Casa de Saud agora se meteu na cabeça que o seu melhor aliado é o
presidente Trump.
Encurralada em termos geopolíticos, incapaz de se livrar sozinha das amarras da
paranoia que é sua marca registrada, a Casa de Saud decidiu ir para a ofensiva,
com o rei Salman investindo num perdulário tour asiático, Pequim incluída, onde fechou uma montanha de
negócios, e com
o príncipe coroado Mohammad bin Salman – na verdade o 'príncipe guerreiro',
responsável pelo continuado massacre de civis no Iêmen – cortejando Trump em
Washington.
Disso resultaram as 'notícias' de que a Arábia Saudita será "conselheira
muito próxima" de Trump para assuntos de segurança e economia do Oriente
Médio, incluindo a tragédia palestina e o acordo nuclear iraniano. Nenhum
círculo do "Inferno" de Dante ofereceria receita mais perfeita para
"dores de parto" de tragédia sem alívio para algum novo Oriente
Médio.
Todos os olhos postos nos curdos sírios
Como se poderia prever que acontecesse e aconteceu, nem Moscou nem Teerã foram
convidadas para a reunião anti-Daech, de 68 países, que acontecerá em
Washington na próxima semana. Mais um capítulo da guerra hardcorede informação: não é
admissível que a opinião pública norte-americana conheça a verdade: que Rússia
e Irão estão realmente fazendo – e vencendo – a única guerra séria ao terror
que há no mundo.
Esmagar o Daech é uma das principais promessas de campanha de Trump. Jamais
conseguirá coisa alguma com várias centenas de US Marines de olhos fixos em Raqqa – por falar
dela: tecnicamente é invasão; sem importância, mas invasão, porque Damasco não
solicitou a presença de qualquer Marine.
Assim sendo, os EUA só conseguiram retroceder para o Plano A, também conhecido
como "Curdos Sírios".
Primeiro, o mais alto comandante dos EUA no Oriente Médio general Joseph Votel
foi até Kobane para prometer apoio do Pentágono às Forças Sírias Democráticas
[ing. Syrian Democratic Forces
(SDF)] lideradas pelos curdos. Depois, o Pentágono distribuiu sua
estratégia para derrotar o Daech (revista) que Trump mandou o Pentágono fazer –
e que se resume a "Ninguém dorme até Raqqa".
Isso implica um alinhamento geopolítico completamente novo. A equipe Obama –
especialmente a CIA e o Departamento de Estado – era refém da visão turca de que
os curdos seriam "terroristas". Mas não Trump. Nem, por falar dele,
Bogdanov: "Por que a Turquia aceitou um Curdistão Iraquiano, mas não
aceita um Curdistão na Síria? Acho que não é assunto da Turquia. É assunto
iraquiano e assunto sírio. O povo sírio – não o Estado russo ou o Estado turco
– deve decidir."
O Pentágono está, para
dizer com elegância, 'de saco-cheio' com Ankara. Razões não faltam: desde os
expurgos sem fim (que expulsaram espiões norte-americanos estrategicamente
plantados dentro do governo turco), até a reaproximação Turquia-Rússia,
implícita na ameaça feita por Erdogan, de que se pivoteará para o Oriente, sem
dar explicações, no caso de Washington apoiar os curdos sírios, e/ou se
Fethullah Gulen – que Erdogan acusa de ser o cérebro por trás do fracassado
golpe militar para derrubá-lo em 2016 – não for extraditado.
Assim sendo, eis só um gostinho da nova cheesecake com molho de amoras que rola na
cidade: Washington, Moscou e Teerã, todas aliadas em apoio aos curdos sírios.
Que é complicado, sim, claro que é. Nas negociações em Astana, Turquia, Rússia
e Irã estão teoricamente do mesmo lado. Mas Teerã apoia uma espécie de
autonomia curda na Síria – o que é anátema para Erdogan, para quem a única
autonomia curda admissível é a de seus amigos controlados por Barzani no
Curdistão Iraquiano.
Cabe a Moscou construir um ponto de equilíbrio – se conseguir explicar a Ankara
que não há outra saída, além da autoadministração curda-síria numa futura
Federação Síria. É conceito extremamente ambicioso: Moscou quer mostrar a
Oriente e Ocidente como os sírios curdos, ator sírio realmente não islamista,
ator sírio secular, são o instrumento perfeito para combater o Daech e outras
formas de jihadismo salafista.
Não surpreende que a Arábia Saudita não dê sinais de ter ficado impressionada:
combater contra o Daech jamais foi prioridade dos sauditas. Mas o que realmente
conta é que Ancara ainda não foi persuadida.
Erdogan está totalmente focado no referendo que se aproxima, e que pode
convertê-lo numa espécie de sultão-presidente. Para vencer de modo decisivo,
ele tem de cortejar o nacionalismo turco, por todos os meios necessários. Ao
mesmo tempo, geopoliticamente, não pode, ao mesmo tempo, ir contra Rússia/Irã e
também Washington.
Há apenas poucas
semanas ninguém teria imaginado que os curdos sírios viessem a ter potencial
estratégico de alavancagem suficiente para virar de pernas para cima a
geopolítica do Oriente Médio – ligado à Ásia, África e Europa. O projeto chinês One Belt, One
Road (OBOR) [Um Cinturão, uma Estrada] – aquele
frenesi de construção de portos, oleodutos, gasodutos, trilhos para trens de
alta velocidade – visa diretamente a passagem do Sudoeste da Ásia, do Irã (nodo
chave) para a Arábia Saudita (principal fornecedor de petróleo para a China). A
Síria também é um dos nodos futuros do projeto OBOR chinês – e, para isso, a Síria tem de
ter paz e estar livre de jihadistas salafistas. Silenciosamente, ao modo
discreto da integração da Eurásia, a China apoia o que Rússia e Irã estão
decidindo.
Nesse momento já se vê muito mais claramente quem está configurando as dores
do nascimento de um Novo Oriente Médio: não é Israel. Não é a Casa de Saud. E
não é exatamente Trump.
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