Quando o zum-zum em torno do encontro Trump-Xi converter-se numa Mar-a-Lago em campo mês que vem, os dois presidentes terão de concordar integralmente em pelo menos uma questão: "o terror islâmico radical" – na terminologia trumpeana.
Donald Trump aposta suas fichas num "banimento sem banir" que – em teoria – restringiria o influxo de islamistas potencialmente radicais para o território dos EUA; seu contraparte chinês, Xi Jinping, em encontro com políticos da província Xinjiang, acontecido durante a sessão anual do Congresso Nacional do Povo em Pequim, lançou uma "Grande Muralha de Ferro", para proteger o Extremo Oeste da China.
A questão tem a ver em primeiro lugar com o Movimento para Independência do Turquestão Leste, MITuL [ing. East Turkestan Independence Movement (ETIM), ativo em Xinjiang e que Cheng Guoping, Comissário do Estado para Questões de Contraterrorismo e Segurança, descreve como "o desafio mais proeminente contra a estabilidade social e desenvolvimento econômico e a segurança nacional da China."
MITuL é organização islamista separatista extremista que, segundo Cheng, luta pela "independência de Xinjiang."
Foi declarada organização terrorista pela União Europeia, EUA, Rússia, China, Emirados Árabes Unidos, Paquistão, Cazaquistão e Quirguistão, dentre outros. A questão de se o movimento seria realmente organização separatista coesa, ou não, continua em discussão, mas não para a inteligência chinesa, que já decidiu que, sim, é.
O assunto, como se poderia prever, tem a ver com ISIS/ISIL/Daech.
O Daech
distribuiu recentemente um vídeo falado em uigur, língua do ramo turco, escrita
com caracteres árabes e falada pelos muçulmanos de Xinjiang, no qual se veem
jihadistas em treinamento em algum ponto no Iraque, antes de passar a faca na
garganta de um suposto informante.
Mas o xis desse vídeo é o segmento final de 30 segundos, no qual pela primeira vez o Daech ameaça diretamente Pequim. Momentos antes da execução, um combatente – na tradução do site Intelligence Group, com sede nos EUA – exclama:
"Oh, vocês, chineses, que não compreendem o que o povo está dizendo! Somos os soldados do Califato, e chegaremos até vocês para explicar-lhes tudo pelas línguas de nossas armas, para fazer correr rios de sangue e vingar os oprimidos."
A inteligência chinesa mantém vastos arquivos sobre uigures que se converteram por metástase em jihadistas por todo o "Siriaque", depois de fazerem a jornada, ilegalmente, pelo Sudeste da Ásia e Turquia. Pequim está tão alarmada ante a possibilidade de eles voltarem para casa, como Moscou com os chechenos e outros jihadistas do sul do Cáucaso.
E há um terceiro elemento, também muito surpreendente. O vídeo do Daech assinala a excomunhão formal do Partido Islâmico do Turquestão, PIT [ing. Turkestan Islamic Party (TIP), que é, essencialmente, a al-Qaeda em Xinjiang.
A liderança do PIT e o núcleo duro dos combatentes têm base nas áreas tribais do Paquistão, protegidos pelo Tehreek-e Taliban (Talibã Paquistanês) e têm lançado grande número de ataques através da fronteira ao longo dos últimos muitos anos. O anúncio agora visa a instalar um Califato para toda a Ásia Central, mas que presta obediência a Ayman al-Zawahiri da al-Qaeda, não a al-Baghdadi, autoproclamado Califa do Daech.
Agora, a questão chave é saber se MITuL e PIT são um e o mesmo partido. Os jihadistas uigures são conhecidos por escorregadios e cheios de segredos. Conheci alguns deles nas prisões do comandante Masoud, o "Leão do Panjshir", no norte do Afeganistão, apenas três semanas antes do 11/9 – e eles sequer admitiam a existência do MITuL. Também negavam quaisquer laços com a al-Qaeda, seguindo o exemplo de Hasan Mehsum, então líder do MITuL. Sempre insistiram que seu principal objetivo era tornarem-se independentes da China.
Pequim considera o PIT um MITuL repaginado; altos funcionários como Cheng Guoping continuam a referir-se a todos os jihadistas uigures como MITuL. Movimento fluido, que congregava muitos subgrupos derivados dos separatismos, o mais seguro é dizer que "MITuL" aplicava-se a poucas centenas de combatentes uigures ativos nos dois países, Afeganistão e Paquistão, até que o PIT foi anunciado formalmente em 2006.
E há outros sobretons complicados. O MITuL foi ligado ao Movimento Islâmico do Uzbequistão, MIU [ing. Islamic Movement of Uzbekistan (IMU)], cofundado por Juma Namangani, afamado jihadista, e ex-soldado da infantaria soviética, que morreu no Afeganistão em 2001. O MIU por sua vez era conectado ao Talibã Afegão. Então, em meados dos anos 2000s, houve um racha; e a conexão/proteção do MITuL transferiu-se para o Talibã Paquistanês.
O vídeo do Daech opta por se referir a PIT, não a MITuL. Embora não tão sofisticado quanto o Daech, o PIT também mantém operação de mídia multilíngue própria, a Sawt al-Islam (Voz do Islã), completada com uma revista Islamic Turkestan.
À parte o labirinto terminológico, a inteligência chinesa por acabar por ter de erguer uma Grande Muralha de Ferro contra dois fronts separados: contra o Daech e os jihadistas uigures que lutam ao lado do Daech na Síria e no Iraque, os quais podem estar retornando a Xinjiang ou ao Paquistão; e contra as ramificações/interpolações da al-Qaeda que se autodesignam PIT. Michael Clarke, especialista em Xinjiang na Academia de Segurança Nacional da Universidade Nacional da Austrália, diz que os indícios de um racha entre os uigures podem indicar "ameaça ainda maior à China", uma vez que sugerem que os terroristas uigures estariam em condições de se servir tanto das capacidades do Daech como das capacidades da al-Qaeda.
O Daech está empenhado em seduzir matilhas de cães andarilhos, não só do norte da África, mas também da Indonésia, Paquistão e do noroeste chinês. Há pelo menos 23 milhões de muçulmanos predominantemente sunitas na China – se se somam os uigures, a maior parte dos quais têm base em Xinjiang, e os huis, uma minoria étnica que vive nas províncias de Gansu, Qinghai e Ningxia; é duas vezes a população da Tunísia, e fértil reserva de novos recrutas para o Daech. Desde 2014 al-Baghdadi definiu a China como alvo para a Jihad. Em novembro de 2015, o Daech degolou um refém chinês. E distribuiu vídeos em mandarim, para atrair os huis.
Entre a caldeirinha separatista e a cruz jihadista
O vídeo do Daech, produzido pela unidade do grupo na província al-Furat, no oeste do Iraque, para onde os jihadistas uigures prometeram voltar para casa e "fazer correr rios de sangue", foi distribuído no mesmo dia (27 de fevereiro) em que a China realizou o último de uma série de exercícios massivos de unidades de policiais paramilitares em Xinjiang com o objetivo de manifestar a decisão do governo de esmagar com firmeza as ameaças contra a segurança nacional.
Coincidência? Talvez. Mas cabe pouca dúvida seja (i) da forte determinação do Daech, de disseminar aJihad até os pontos mais remotos, agora que estão perdendo espaço na Síria e no Iraque, seja (ii) da determinação igualmente forte dos chineses, de impedir que as queixas dos uigures explodam em jihadismo total, justamente na maior província da China, bem ali, como a cavaleiro da Nova Rota da Seda [ver mapa].
"Um Cinturão, Uma Estrada" [ing. One Belt, One Road (OBOR)], designação oficial do projeto Nova Rota da Seda, é o mais importante empreendimento de política externa e econômica do presidente Xi. Xinjiang, província no exato coração da Ásia, é do tamanho de Alemanha, França, Itália e Reino Unido somados; e é elo geográfico crítico, beirando Mongólia, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Afeganistão, Paquistão e Índia. Repousa sobre vastas reservas de energia e minérios; é a maior produtora chinesa de gás natural, e será nodo privilegiado conectando a China à Ásia Central e à Ásia Ocidental, por um emaranhado de trilhos para trens de alta velocidade, oleodutos, gasodutos e redes de fibras óticas. A capital da província, Urumqi, está sendo convertida num nodo crucial de tecnologia de informação. Problemas em Xinjiang significam graves dificuldades para o Projeto Um Cinturão Uma Estrada. Pode-se apostar sem medo de errar que Pequim não permitirá que aconteçam.
Desde agosto de 2016, a Região Uigure Autônoma de Xinjiang – seu nome oficial – é governada Chen Quanguo, secretário do Partido Comunista da Região; membro do 18º Comitê Central do Partido Comunista da China, PCC, e candidato promissor ao 19º Politburo do PCC , a ser eleito em outubro de 2017.
Antes de assumir a posição em Xinjiang, Chen serviu durante cinco anos como secretário do Partido Comunista da China da Região Autônoma do Tibet. Conhece as questões das etnias de inúmeras regiões de fronteira; foi encarregado por Pequim de enfrentar mais essa; e estava ao lado de Xi Jinping quando foi anunciada a política da Grande Muralha de Ferro.
Quando governava o Tibet, Chen reativou métodos de controle social concebidos por antigas dinastias chinesas, como o sistema baojia – de grupos de vizinhos que se observam entre eles, hoje chamado "sistema de administração social em grade" – com muitos pequenos postos de polícia em Lhasa e cidades menores, e redes de cidadãos organizados por quarteirão, para se fiscalizarem uns os outros, forçar formas de comportamento mais adequados e identificar estrangeiros suspeitos e potenciais geradores de tumultos.
Esses métodos estão agora sendo replicados, da capital Urumqi para Korla, Aksu, Kashgar e Hetian. E se os controles sociais e a vigilância em grade provar-se insuficiente, Chen sempre poderá recorrer à Força Policial Armada do Povo, das quais enormes unidades paramilitares apareceram com destaque nos desfiles do final de fevereiro [imagem Reuters].
As apostas são altíssimas. Há uma fina linha a separar controles sociais administrados com equilíbrio, que recebam apoio popular (e têm boas chances de serem bem-sucedidos), e controles sociais administrados sem cuidado, que a população ressinta como repressão (uma violência contra a qual a população fatalmente reagirá com violência).
Agora temos de esperar para saber se a Grande Muralha de Ferro de Chen e Xi conseguirá destrinchar separatismo e jihadismo; ou se o recurso a todo esse ferro resultará num duro golpe contra o mais ambicioso projeto de infraestrutura, de todo o século.
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